Paraguai quer mudar Tratado de Itaipu
Maurício Corrêa, de Brasília —
Enquanto o Governo brasileiro vê o fim do Tratado de Itaipu, em 2023, como algo distante e que só interessa ao Itamaraty, o Paraguai discretamente já colocou parte de suas fichas na mesa e mostrou que não abre mão de toda a sua cota de energia na binacional Itaipu para colocar em andamento um ambicioso plano de desenvolvimento, que contempla a atração de grandes consumidores industriais do Brasil e da Argentina. Além disso, os paraguaios pela primeira vez deixaram claro que pretendem entrar com a sua energia, pós-2023, nos mercados livres do Cone Sul, principalmente Brasil e da Argentina.
O Tratado de Itaipu foi firmado em 1973, com validade de 50 anos. O tempo passou de repente e os 50 anos praticamente já eram. Quando surgiu o acordo, tanto o Brasil quanto o Paraguai viviam sob ditaduras militares, com uma clara submissão dos militares paraguaios aos seus colegas brasileiros, muito mais poderosos.
O primeiro parágrafo do Tratado menciona o “espírito de cordialidade” e os “laços de fraternal amizade” que unem os dois países. Bem, era o que valia durante os anos 70, quando vicejou na América Latina a época da diplomacia militar. Embora os dois países continuem amigos e sejam sócios na binacional Itaipu, os tempos mudaram e agora são radicalmente diferentes: a amizade continua a existir entre os países vizinhos, mas os negócios são negócios e são considerados à parte. Os paraguaios evidentemente querem mais da sua parte naquele imenso latifúndio energético, parodiando o clássico de Chico Buarque em “Funeral de um lavrador”.
Pelo tratado, Brasil e Paraguai dividem a energia em partes iguais. Como o Paraguai não consome toda a energia a que tem direito, o Brasil adquire o excedente da parte paraguaia. Em 2018, segundo dados oficiais da binacional Itaipu, isso totalizou US$ 327 milhões, o que tem sido um ótimo negócio para o Brasil e péssimo para o Paraguai, considerando os valores atuais da energia elétrica gerada no Brasil. É uma bagatela. Entre os paraguaios, esse valor irrisório é visto por setores mais nacionalistas como um exemplo típico do imperialismo brasileiro a que estão submetidos desde a guerra com o Brasil que arrasou o Paraguai no século 19.
Discretamente, a Administración Nacional de Electricidad do Paraguai (Ande, uma espécie de Eletrobras do país vizinho) publicou um edital, no dia 22 de junho, através do qual resume o que pretende fazer. O edital foi lançado devido “à necessidade de prever com suficiente antecipação a incorporação de novas demandas de grande porte”, ou seja, é dirigido a empresas interessadas na compra de energia elétrica de propriedade da Ande, para demandas superiores a 100 MW.
Com isso, os paraguaios mudam completamente o perfil dos seus consumidores, o que significa que eles estão interessados em atrair grandes indústrias do Brasil e da Argentina, que hoje pagam uma nota nas contas mensais de energia elétrica. Como no Paraguai a questão tributária é infinitamente mais suave do que no Brasil, a energia da Ande será muito mais competitiva do que qualquer megawatt produzido no Brasil ou na Argentina. Essa aí os paraguaios vão ganhar com facilidade e isto já está acontecendo, embora eles por enquanto estejam atraindo apenas médias empresas e de setores específicos, como confecção, embalagens, etc.
O edital estabelece que as empresas de olho na energia do país vizinho devem se manifestar por escrito, atendendo a 13 itens específicos que são do interesse da Ande (leia-se Governo do Paraguai). Várias questões estratégicas precisam estar contempladas nas respostas.
Por exemplo: demanda máxima de potência (em MW), consumo atual do interessado, demanda de potência e energia por mês, características do suprimento (se é energia firme ou energia interruptível), fatores de potência e carga, natureza do empreendimento.
Caso a empresa queira se instalar no território paraguaio, a Ande quer saber a quantidade de mão-de-obra direta que será gerada pelos novos postos de trabalho que se espera incorporar ao mercado paraguaio; Também é preciso definir quando o projeto entrará em operação.
Curiosamente, os paraguaios colocaram no edital um item que pode servir como uma espécie de armadilha: quanto cada interessado estaria disposto a pagar pela energia da Ande.
Dois itens em especial (o sete e o 12) preocupam especialistas brasileiros ouvidos por este site, pois não escondem as intenções internacionais da Ande visando à colocação da sua energia da cota de Itaipu a partir de 2023.
No item sete, o edital diz que os interessados devem especificar se a energia da Ande será entregue “dentro ou fora do território nacional”, ou seja, no Paraguai ou em outro país vizinho.
Esse item acendeu uma luz amarela no setor elétrico brasileiro, pois, há cerca de 10 anos, houve uma discreta (embora intensa) troca de iniciativas envolvendo técnicos da Ande e comercializadores brasileiros a respeito dessa energia paraguaia, com várias reuniões em Assunção e São Paulo. Os paraguaios estavam especialmente interessados em saber como eles poderiam colocar a parte da energia gerada em Itaipu no mercado livre brasileiro.
O item 12, no entendimento das mesmas fontes, precisa ser conjugado junto com o sete, pois a Ande pergunta se as empresas interessadas estariam dispostas a cumprir as condições técnicas e financeiras, no caso de a Ande realizar a venda de energia ou potência por meio de uma licitação pública internacional.
Está claro, enfim, que o Paraguai deu a partida naquilo que lhe interessa objetivamente a partir de 2023: atrair grandes indústrias e simultaneamente injetar a sua energia no mercado livre do Brasil ou Argentina. Quem estiver interessado em ser atendido por energia paraguaia e que tenha projetos com demanda superior a 100 MW deverá manifestar interesse à Ande, por escrito, até o dia 16 de agosto próximo, registrando no protocolo da Ande, em Assunção.
Em uma de suas primeiras iniciativas, o Governo Bolsonaro emitiu um correto sinal diplomático em direção a Assunção, registrando o interesse do Brasil em renovar o Tratado de Itaipu. No próprio MME tem gente que vem estudando o caso. Sem dúvida, será renovado, mas não mais naquelas bases negociadas pela camaradagem militar dos anos 70 do século passado. Se o Brasil quiser energia do Paraguai, terá que enfiar a mão no bolso e pagar mais caro. O recado já foi dado através do edital, o que também significa que a energia, no Brasil, ficará mais cara também por causa disso.