Finanças das transmissoras inspiram cuidados
Maurício Corrêa, de Brasília —
As dificuldades para se encontrar uma solução empresarial para a transmissora espanhola Abengoa não se limitam ao fato de a empresa estar pedindo alto pelos seus ativos em operação e em desenvolvimento no Brasil. Mais do que isso, quem tem bala na agulha e interesse nos 13 mil km de linhas da Abengoa também está pensando no cenário meio caótico que envolve o segmento da Transmissão. Antes de bater o martelo em torno da Abengoa, potenciais investidores estrangeiros como a canadense Brookfield, que tem mais de 100 anos de Brasil, e a chinesa State Grid, que é uma recém-chegada, estão pensando mais do que o habitual para ver se entram ou não no negócio.
Este site teve acesso à apresentação reservada feita pelo presidente da Associação Brasileira das Empresas de Transmissão de Energia Elétrica (Abrate), Mário Miranda, na última reunião do Fórum das Associações do Setor Elétrico (Fase), realizada em Brasília no dia 23 de fevereiro. Perante o público restrito formados pelos seus colegas de diretoria das outras associações empresariais do setor elétrico, Miranda soltou o verbo e não escondeu a dramática realidade financeira da Transmissão, que é bem diferente do quadro róseo que o Governo costuma desenhar.
Pouco conhecido, o Fase é uma organização constituída pelas organizações que representam as empresas do setor elétrico nos vários segmentos. O fórum realiza reuniões fechadas a cada dois meses (a próxima será em São Paulo), das quais participam apenas diretores e, quase sempre, só os presidentes das associações. Eventualmente, o grupo recebe convidados. Na última reunião, por exemplo, o presidente da holding estatal Eletrobras, José da Costa, fez uma apresentação sobre as atividades da empresa. No Fase, são discutidos aspectos técnicos que interessam a todos os segmentos, em um processo bastante objetivo de nivelamento de informações.
Em sua apresentação, Mário Miranda mostrou que o impacto da Medida Provisória 579, de 2012 (atual Lei 12.783, sancionada no ano seguinte) foi devastador, resultando numa redução total da RAP de 70%, o que significou para as concessionárias de Transmissão uma perda de R$ 6,3 bilhões. No jargão do setor elétrico, RAP é a tradução de Receita Anual Permitida, que corresponde à remuneração que as transmissoras recebem para disponibilizar as suas linhas ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e prestar o serviço público de Transmissão aos usuários.
A Abrate é formada por 10 transmissoras: Cemig, Copel, Cteep, Eletronorte, Eletrosul, Furnas, Chesf, CEEE, Celg e pela chinesa State Grid, que se agregou ao grupo mais recentemente. Examinando os números das nove empresas mais antigas, Miranda concluiu que, no caso da Cemig, a redução da RAP foi de 69%; na Copel, 62%; CTEEP, 76%; Eletronorte, 74%; Eletrosul, 55%; Furnas, 72%, Chesf, 62%, CEEE, 64%; e Celg, 62%. O presidente da Abrate destacou que, com a MP 579, o resultado principal nas transmissoras foi simplesmente a “eliminação da capacidade para investimentos”.
Além da magnitude da perda financeira, a pressão arterial dos dirigentes também subiu quando foi conhecida a relação entre a RAP e os custos operacionais das nove empresas mais antigas da Abrate. O total do custo operacional ajustado atingiu R$ 3,715 bilhões, enquanto as receitas totais ficaram na casa de R$ 2,812 bilhões (24% a menos), ou seja, as nove transmissoras tiveram que administrar um déficit próximo a R$ 900 milhões.
O sistema brasileiro de Transmissão é imponente, devido ao tamanho do País e à existência de um Sistema Interligado Nacional (SIN), através do qual o ONS administra o intercâmbio de energia elétrica de uma região para outra, gerenciando com mão de ferro as sobras e déficits de energia nas regiões geográficas. Assim, quando há risco de faltar energia em uma região, por qualquer razão, o ONS determina que seja transportada, pelo sistema de Transmissão, a energia eventualmente disponível em outra região.
Mas, como Mário Miranda revelou aos dirigentes das demais associações, embora as transmissoras tenham apertado seus custos, o fato é que elas tem compromissos contratuais assinados com a Aneel, derivados das concessões, e, nesse contexto, são obrigadas a efetuar investimentos nas linhas de transmissão ou nas subestações. Só que a receita tem sido insuficiente para cobrir os custos e os investimentos obrigatórios e manter a qualidade do serviço a ser oferecido aos usuários.
Em 2015, por exemplo, os investimentos obrigatórios contratuais totais das nove transmissoras foram de R$ 2,678 bilhões, sendo R$ 1,804 bilhão na rubrica reforços e R$ 874 milhões na rubrica melhorias. Em 2016, a soma dos investimentos obrigatórios contratuais bateu na casa de R$ 3,126 bilhões, sendo R$% 2,116 bilhões classificados como reforços e R$ 1,010 bilhão como melhorias. “Os valores das melhorias não incluem a substituição plena de 58% dos equipamentos com vida útil física esgotada, que soma cerca de R$ 4 bilhões anuais adicionais”, alertou Miranda.
Nesse contexto de cobertor curto, as associadas da Abrate sonham noite e dia com o pagamento das indenizações devidas pelo Governo em função da MP 579, previsto para começar em julho próximo. Miranda disse na reunião que “a indenização justa é necessária para a recuperação da capacidade de investimentos”. Ele deixou claro aos seus colegas do Fase que o pagamento das indenizações como compensação financeira aos agentes é a principal pendência do processo de prorrogação das concessões, sendo condição necessária ao reequilíbrio econômico-financeiro das empresas. Ele relatou que as indenizações já homologadas pela Aneel somam R$ 12,9 bilhões, enquanto as em fase de homologação giram em torno de R$ 26,5 bilhões (valores indicados pelas empresas e que provavelmente serão lipoaspirados pela Aneel).
Visto sob qualquer ângulo, o sistema brasileiro de Transmissão é um colosso, com um total de 102 mil km de linhas, das quais as empresas associadas à Abrate tem 76 mil km, segundo os números da Abrate. A maior transmissora do País é Furnas, com um total de 19.255 km, seguindo-se a CTEEP (18.782 km) e a Chesf (18.645 km). A novata State Grid tem 3.255 km de linhas. Mas nesse quadro o peso do Sistema Eletrobras é enorme, com um total de 55.068 km de linhas, numa rede distribuída entre Furnas, Chesf, Eletrosul (8.777 km) e Eletronorte (8.391 km).
Manter essa rede funcionando em condições razoáveis, de modo que a energia nunca deixe de faltar nos centros consumidores, custa muito caro. Miranda calcula que, até 2024, os leilões de Transmissão devem requerer investimentos anuais médios em torno de R$ 10,8 bilhões. É possível atingir esse resultado, pois o marco regulatório estável levou a níveis elevados de investimentos, superiores a R$ 140 bilhões, no período 2000 a 2015.
Só que agora o cenário mudou muito. Com a deterioração do quadro econômico e as incertezas de natureza regulatória, as empresas interessadas em explorar o mercado de Transmissão praticamente exigem que o Governo aumente o valor da RAP de cada uma. Elas brigam pelo aumento do retorno, da mesma forma que os bancos colocam os governos na parede e exigem altas taxas de juros no lançamento de papéis da dívida pública, pois, se a taxa não subir eles não compram os papéis e aí o Governo não poderia girar a dívida pública. Coincidência ou não, o fato é que nos últimos leilões de linhas de Transmissão, com pouco volume de RAP, não têm surgido empresas interessadas em grande parte das linhas.
Enquanto se desenrola esse mecanismo de pressão e contra-pressão em torno da RAP, as transmissoras obviamente têm outras reivindicações junto às autoridades do setor elétrico. Elas querem, por exemplo, acesso para emitir debêntures de infraestrutura. A Lei 12.844, de 2013, abriu essa possibilidade para todas as concessionárias constituídas na forma de sociedades anônimas (SA`s).
Só que o Governo não atualizou o Decreto 7603, de 2011, e nem a Portaria 47 do MME, de 2012, o que mantém a restrição de emissão das debêntures por parte das chamadas Sociedades de Propósito Específico (SPE´s), que é um outro regime jurídico que agrupa os investidores em negócios de infraestrutura. Além disso, as transmissoras também querem acesso automático das estatais estaduais que eventualmente ganhem leilões aos recursos baratos do BNDES. Hoje, existe uma restrição nesse sentido por causa da Resolução 2827, de 2001, do Banco Central, como medida de controle das contas públicas.