Mercado rejeita proposta de monitoramento
Maurício Corrêa, de Brasília —
Os comercializadores de energia elétrica vivem um dilema. Sabem que a tão sonhada abertura total do mercado, por eles acalentada desde o início dos anos 2000, está para chegar. Mas, quando acontecer, o mercado precisará mudar a sua forma de operar e ser, sobretudo, mais transparente e seguro. Não será mais possível gerenciar contratos somando dezenas ou centenas de milhões de reais através de pequenas empresas de reduzidos capitais e baixos níveis de sofisticação financeira. É um mercado que tende ao enxugamento, pois nem todos os atuais agentes estarão em condições de arcar com as futuras exigências de custos.
Uma antevisão desse mercado do futuro próximo já está acontecendo. Durante meses, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia discutiram uma proposta de monitoramento dos agentes por parte da Câmara, como parte desse processo de transparência. A Câmara apresentou uma proposta que arrocha os agentes, conforme este site antecipou no dia 30 de agosto. Nesta sexta-feira, 10 de setembro, depois de um intenso debate interno com os 106 associados, os comercializadores encaminharam a sua proposta à Aneel. Foram rejeitados os principais pontos indicados pela CCEE.
O site “Paranoá Energia” teve acesso à carta enviada à agência reguladora e à integra da nota técnica de 46 páginas que consiste na “Proposta Abraceel para o Monitoramento da Alavancagem dos Agentes no Mercado Atacadista de Energia”.
Em ambos os documentos, a associação reafirma o seu “total compromisso” com o tema da segurança do mercado. “Temos clareza que a nossa bandeira principal de um mercado livre para todos, sem a qual o Brasil jamais terá preços de energia competitivos, está atrelada a evolução de práticas comerciais seguras”, reconhecem os comercializadores. “Uma gestão de riscos robusta pelas empresas é imprescindível para ampliar a segurança do mercado”, frisa a carta à Aneel.
Os comercializadores, lembraram, inclusive, que raramente são vistos nas listas de inadimplentes do MCP, “a despeito de certo processo proposital de desinformação que visa tão somente postergar mudanças estruturais urgentes no setor elétrico”.
A proposta de monitoramento foi elaborada com a consultoria da Volt Robotics e a Elekto, buscando inspiração em mercados mais desenvolvidos, como o financeiro, e baseando-se na regulação prudencial aplicada pelo Banco Central do Brasil e até mesmo em casos específicos como do Banco Safra. Internacionalmente, a Abraceel estudou a segurança do mercado como é praticada na Califórnia e na Grâ-Bretanha.
“Partimos do princípio de que nenhum mercado nasceu pronto, nem o financeiro tampouco o de eletricidade, e que evoluções devem respeitar o estágio e o contexto atual de cada mercado, devendo ser implementadas de maneira gradual para assegurar a sustentabilidade dos negócios e o ritmo de adaptação dos agentes e das instituições”, assinala a carta da Abraceel.
A proposta dos comercializadores, entretanto, quando olha para o conjunto de medidas sugeridas pela CCEE, esbarra nas condições peculiares do mercado de agentes de comercialização no Brasil.
Como a própria nota técnica admite, trata-se de um mercado bastante concentrado, com 16 agentes representando 49% do volume de energia; 62 agentes, 41%; e 181 agentes, 10%. É provável que na pretendida abertura do mercado haja um enxugamento no número de agentes. Essa é uma realidade e um risco que a associação setorial não poderia deixar de considerar em sua proposta, pois, afinal, ela existe e é financiada para defender os interesses corporativos dos seus associados. Ninguém gosta de dar um tiro no próprio pé.
“Há muito o Setor Elétrico Brasileiro tem debatido o tema da Segurança de Mercado sem, no entanto, serem observados avanços relevantes, principalmente se compararmos o que está ocorrendo no Brasil com outros mercados de energia no mundo, bem como se buscarmos boas práticas de outros setores da economia, tal como o financeiro”, destaca a nota técnica elaborada pelos comercializadores.
Nesse sentido, apesar de convergir no discurso com a CCEE, a proposta dos comercializadores diverge bastante em relação às medidas que poderiam ser adotadas, que, na avaliação da associação, deveriam seguir na seguinte direção:
1. Monitorar a alavancagem deve ser um processo simples e de baixo custo;
2. As exigências devem ser progressivas, de acordo com os impactos que os agentes podem promover no mercado;
3. Os compromissos de governança, capacitação e competências devem ser assumidos formalmente por agentes e entidades;
4. Só os agentes possuem os detalhes dos seus contratos, cabendo à Aneel aprovar as metodologias e à CCEE operacionalizá-las;
5. As metodologias precisam ser documentadas e estar disponíveis;
6. Os agentes serão responsáveis pelos seus cálculos e darão publicidade aos resultados com periodicidade pré-definida; e
7. A fiscalização deve ser anual e aleatória, atingindo 10% dos agentes.
“A governança deve evoluir, com o estabelecimento de critérios robustos de sigilo e segurança da informação, de forma a resguardar a confidencialidade dos dados e a estratégia comercial das empresas”, diz a proposta ao justificar a razão pela qual a associação está optando por um processo mais lento de mudanças.
Nesse contexto, “apesar de as propostas Abraceel e CCEE convergirem na regulação prudencial para monitoramento de alavancagem dos agentes, ainda residem divergências relevantes entre as propostas, que acabam por impactar na celeridade com que podem ser adotadas”, reconhece o documento da Abraceel, que lista os pontos rejeitados pela base dos comercializadores em relação à proposta formulada pela Câmara:
a) Não há segmentação por classe, de modo a oferecer tratamento isonômico entre os agentes;
b) Não há obrigação de divulgação da exposição comprada e vendida dos próximos seis meses, o que simplificaria o processo, em especial a governança, capacitação e responsabilização da CCEE;
c) Tampouco há obrigação de divulgação da exposição das cinco maiores contrapartes nas próximas três liquidações, dado que ambas as propostas não avaliam o risco de crédito em um primeiro momento;
d) Considera-se de partida o Capital Social, ao invés do total dos ativos líquidos, em respeito ao atual estágio de evolução da regulação e do mercado, reconhecendo a possibilidade de avanços futuros nesse quesito; e
e) Não foram incluídos os derivativos de energia, mercado que não está sob regulação da Aneel.
Os comercializadores resistem há anos em abrir seus dados contratuais para a CCEE. É uma questão filosófica importante para o mercado. E agora mantiveram essa tradição, embora a CCEE tenha dado garantias que os dados serão criptografados e que inexistem riscos para os agentes. “É importante ter em mente que o vazamento de informações sobre eventuais desequilíbrios dos agentes pode antecipar movimentos de mercado e tornar irremediável uma situação que poderia ser superada. A responsabilidade é elevadíssima para todas as partes envolvidas”, alega a nota técnica da Abraceel.
Para os comercializadores, “o maior desafio é encontrar um conjunto de exigências e regramentos que dêem segurança às operações e, ao mesmo tempo, não interfiram nas operações dos agentes e apresentem um custo razoável, que não iniba o desenvolvimento do mercado”.
Segundo a NT, para que o Setor Elétrico comece a caminhar nesta direção, a partir dos estudos realizados e do momento atual do mercado brasileiro de eletricidade, a Abraceel entende que o Monitoramento da Alavancagem, utilizando princípios da regulação prudencial, deve ser o primeiro instrumento para o aperfeiçoamento da Segurança de Mercado.
“Posteriormente, devem ser incluídos mecanismos de garantias financeiras, risco de crédito, risco de volume, risco operacional, risco de liquidez, risco legislativo e regulatório, e assim sucessivamente. Assim, neste momento, o objetivo é estabelecer o Monitoramento Prudencial da Alavancagem dos agentes no que se refere às posições tomadas no Mercado de Curto Prazo, indicando a exposição de todos Agentes –geradores, distribuidores, comercializadores, consumidores, autoprodutores etc. – às variações de preço”.
Em sua proposta, conforme antecipado por este site, a CCEE recomendou um modelo completamente oposto de monitoramento, com a adoção de regras diferentes por classes de agentes. Assim, os consumidores livres e especiais deveriam disponibilizar à Câmara os dados referentes ao nível de cobertura contratual para os próximos seis meses, em percentuais, bem como o volume de megawatts médios considerando os contratos já firmados e ainda não registrados com montante na CCEE.
Quanto aos comercializadores e geradores, haveria a publicação, em base mensal, de um conjunto mínimo de informações padronizadas pela CCEE sobre o gerenciamento de risco e capital, como exposição comprada, vendida e principais contrapartes.
A Câmara também propôs que mensalmente, deveria ser pedida a publicação do fator de alavancagem, patrimônio líquido e ativos líquidos disponíveis. Todas as informações publicadas deveriam ser auditadas e haveria responsabilização administrativa e judicial em caso de fraude.
Nada disso foi aceito pelos comercializadores. Agora, caberá à Aneel arbitrar as divergências entre os agentes e a CCEE, definindo as novas regras para segurança do mercado.