Europa quer nuclear, mas o urânio é russo
Em meio à crise energética na Europa impulsionada pelas sanções ao petróleo e gás russo devido à invasão da Ucrânia, alguns países se voltam à energia nuclear apesar do compromisso europeu de reduzir seu uso. A França, maior dependente desta fonte, anunciou a reativação de todos seus reatores, enquanto a Alemanha suspendeu seu plano de encerrar os reatores do país até o fim deste ano. No entanto, a alternativa esbarra em um problema: a dependência europeia do urânio da Rússia e, em alguns casos, a administração direta da companhia estatal russa em algumas usinas do leste europeu, antiga área de influência soviética.
A energia nuclear corresponde atualmente a 25% da produção total de energia da UE. No entanto, alguns países possuem uma dependência maior. É o caso da Bélgica, Hungria, Eslováquia e, principalmente, da França, cuja matriz energética é 69% composta por energia nuclear. Ao todo, o bloco tem 103 reatores em operação, sendo 56% só na França. Dos 27 países da união, 13 são produtores de energia nuclear.
Com cerca de 60% da energia europeia sendo importada, a Rússia era até antes da guerra a maior fornecedora de petróleo, gás e outros combustíveis fósseis. Porém, Moscou também é um ator influente no mercado da energia nuclear, principalmente na exportação de urânio.
Segundo dados da Comunidade Europeia de Energia Atômica (Euratom), 19,69% do urânio importado pelo bloco veio de Moscou e outros 22,99% do Casaquistão, um aliado de Vladimir Putin. A maior parte é importado do Níger com 24,26%, por fim vem Austrália (15,54%) e Canadá (14,31%).Além disso, Rosatom, companhia estatal de energia nuclear russa, é a terceira maior atuante depois da francesa Orano e da canadense Cameco.
“Quando se trata da energia nuclear da Europa, existem dois níveis diferentes de dependência da Rússia: um é que parte das usinas europeias é de produção russa, e dois é que o combustível para essas usinas é exclusivamente russo”, explica Leon Cizelj, presidente da European Nuclear Society (ENS), uma associação de pesquisa e fomento à indústria nuclear, ao Estadão.
Pelo menos 18 reatores na Europa foram construídos pela Rússia em países como Finlândia, Eslováquia, Hungria, Bulgária e República Checa, que dependem da Rosatom. A Hungria, mesmo após a invasão da Ucrânia e as sanções europeias, anunciou em agosto a construção de dois novos reatores nucleares pela Rosatom. A empresa também é responsável pelo arsenal de armas nucleares da Rússia e atualmente supervisiona a usina nuclear ocupada de Zaporizhzhia, na Ucrânia.
Um relatório produzido pelas ONGs de proteção ambiental Friends of the Earth Germany, Nuclear Free Future Foundation, Rosa Luxemburg Foundation, Greenpeace e Ausgestrahlt em abril, chamou atenção para o ciclo vicioso de abandonar o gás russo, mas cair na energia nuclear russa.
“A Rosatom é a segunda maior produtora de urânio do mundo por meio de suas participações em minas de urânio no Canadá, nos Estados Unidos e principalmente no Casaquistão. Com 7.122 toneladas, a empresa tem uma participação de cerca de 15% na produção global”, explica Angela Wolff, consultora sobre política nuclear e energética da Friends of the Earth Germany no relatório de abril.
Segundo Cizelj, os países têm buscado alternativas à indústria nuclear russa, como a Polônia que fechou acordo com a americana Westinghouse para a construção de sua primeira usina nuclear, mas essas construções são lentas, levando no mínimo dez anos para entrar em operação.
Sanções à Rússia
Ainda assim, o setor de energia nuclear passou isento das oito rodadas de sanções da UE até o momento, apesar dos apelos do Parlamento Europeu por “embargo total às importações russas de petróleo, carvão, combustível nuclear e gás”.
“O terror nuclear russo requer uma resposta mais forte da comunidade internacional [incluindo] sanções à indústria nuclear russa e ao combustível nuclear”, tuitou o presidente ucraniano Volodmir Zelenski em agosto na esteira dos bombardeios à usina de Zaporizhzhia. Países menos dependentes do urânio, como a Alemanha, apoiaram a inserção do combustível no último pacote de sanções em setembro, mas a medida se chocou com Hungria e Bulgária, que são contra.
Segundo estimativas levantadas pela Investigate Europe, uma organização de jornalismo investigativo com foco na Europa, o bloco pagou cerca de 210 milhões de euros (mais de R$ 1 bilhão) para importar urânio bruto da Rússia em 2021, e outros 245 milhões de euros (R$ 1,3 bilhão) foram pagos para importar urânio do Casaquistão, onde o controle é da Rosatom.
“Até agora não há sanções contra a indústria nuclear russa – aliás, o mesmo vale para os EUA. Nós criticamos muito isso. É claro que este setor precisa ser sancionado em vez de financiar a indústria nuclear russa e, portanto, a indústria de guerra”, opina Juliane Dickel, chefe de Política Nuclear e Energética da Friends of the Earth Germany ao Estadão.
Cizelj, no entanto, pontua que seria inviável para a Europa cortar toda a sua fonte energética, tão dependente da Rússia, e ressalta que as importações de material nuclear são muito menores que de gás e petróleo. “Em geral, uma usina, para operar por um ano e meio ou dois, precisa de 40 a 50 toneladas de combustível. Ou seja, nada mais do que dois caminhões”, afirma. “A maior parte do dinheiro para a indústria de energia russa vai para petróleo e gás”.
Segundo dados da Comissão Europeia, em 2021 o bloco gastou mais de 99 bilhões de euros (R$ 559 bilhões) para importar energia da Rússia como um todo. Cizelj acrescenta que, deixando a dependência da energia russa, a Europa tende a recair em outra dependência: a chinesa.
Energia nuclear como alternativa
Em meio à atual crise energética, a Europa correu para estocar gás natural e tem 95% de seu reservatório cheio para o inverno que se aproxima no Hemisfério Norte. Ainda assim, com exceção desses países que já são dependentes da energia nuclear, outras nações planejam deixar seus reatores como “alternativa”, temendo picos de consumo em dias mais frios.
Foi por este motivo que a Alemanha, que é a maior dependente do gás russo, adiou o seu plano de desligar todos os seus três reatores até o fim deste ano – na intenção de desativá-los permanentemente no futuro. A política, que faz parte da lei alemã de transição energética, foi criada pela então chanceler Angela Merkel em 2011, logo após o acidente nuclear de Fukushima
Mas, no início de setembro, o ministro da Economia, Robert Habeck, que é do Partido Verde e um crítico da energia nuclear, anunciou que duas usinas permanecerão em modo de reserva até abril de 2023. “É altamente improvável que o sistema de energia passe por situações de crise que durem várias horas durante o inverno, mas isso não pode ser totalmente descartado”, disse.
Na França a situação é ainda mais delicada, já que o país optou por continuar com a energia nuclear a fim de alcançar a sua meta de neutralidade de carbono pelo Acordo de Paris. Uma medida criticada por ativistas ambientais. Porém, o país precisou fechar quase metade das usinas este ano para reparos, seja por envelhecimento seja por problemas causados pela onda de calor que atingiu a Europa e corroeu algumas estruturas.
Ainda assim o país planeja reiniciar todos os 56 reatores até o início do inverno, prometendo monitorar a situação dos reatores danificados. “A situação francesa é um pouco complicada nesse sentido e a solução depende principalmente da disponibilidade de peças de reposição para conseguir substituir estruturas que foram danificadas em 20 anos de operação”, aponta Cizelj.
Henry Preston, porta-voz da World Nuclear Association, organização que promove o uso da energia nuclear, argumenta que a decisão de encerrar ou reduzir reatores foi prematura e com motivação política, agravando a crise atual. “A indecisão política de construir novas usinas nucleares significa que muitos países não estão agora em posição de substituir os reatores nucleares à medida que eles atingem o fim planejado da operação”, afirma. “Portanto, é provável que vejamos soluções ‘alternativas’ semelhantes para reativar ou estender reatores nucleares para atender às demandas de energia em prazos mais curtos”.