MME coloca expansão do mercado livre em consulta pública
Maurício Corrêa, de Brasília —
Foi necessário esperar quase que uma eternidade e inclusive destituir a chefe de um Governo que era claramente inimigo dos mercados. Mas finalmente parece ter chegado a hora da verdade para o mercado livre de energia elétrica, com a colocação em processo de consulta pública, nesta quarta-feira, 05 de outubro, pelo Ministério de Minas e Energia, de uma nota técnica contendo amplo questionário com muitas perguntas referentes à expansão do ML.
“É de suma importância discutir medidas capazes de garantir que o mercado livre funcione de forma eficiente, não
artificial. Por isso, é relevante determinar o conjunto de condições necessárias para sua expansão, as quais devem estar alinhadas aos princípios da transparência, isonomia, livre iniciativa e da livre concorrência. Nesse processo, por exemplo, é preciso identificar e reconhecer as imperfeições existentes no funcionamento atual do mercado livre, tais como aquelas causadas por descontos tarifários (subsídios) e reservas de mercado”, diz a nota técnica do MME.
O prazo da consulta pública vai até o dia 02 de novembro e, nesse período, o MME quer saber o que a sociedade pensa a respeito dos benefícios gerados pelo ML bem como pelos riscos que ele envolve. Para o Governo, é fundamental que a eventual expansão do ML ocorra de forma sustentável. A nota técnica lembrou que o ML “tem sido apontado como meio de reduzir os gastos dos consumidores com energia elétrica. Em virtude disso, aumentou o interesse declarado da sociedade em escolher o vendedor com o qual firmará contrato de fornecimento de energia
elétrica, possibilidade que tem sido denominada informalmente, de forma imprecisa, por portabilidade da conta de luz”.
A proposta da portabilidade tem sido fortemente estimulada pela associação dos comercializadores de energia elétrica, a Abraceel, que tem encontrado amplo respaldo no Congresso Nacional na defesa da sua tese. Um consultor, entretanto, comentou com este site que o processo de consulta pública agora aberto pelo MME “é um passo não apenas cauteloso, mas também muito inteligente”. No entendimento dessa fonte, o Governo, antes de apoiar qualquer tese da portabilidade no âmbito do Congresso Nacional, pode simplesmente argumentar que há um processo de consulta pública em aberto e, através de seus líderes no Congresso, poderia barrar a portabilidade, já que seria mais racional aguardar o resultado final da própria consulta pública. Nesse raciocínio, a ideia da portabilidade defendida pela Abraceel não tem muito futuro.
Na gestão do PT, qualquer tentativa de ampliação do ML sempre esbarrou no trabalho do Governo, que, através dos líderes partidários, implodiu qualquer tentativa nessa direção. A palavra final sempre foi do MME, que desde a gestão da então ministra Dilma Rousseff nunca viu o ML com simpatia e sempre desconfiou dele, trabalhando sem dificuldade dentro do Congresso para evitar o crescimento da energia livre. Nesse contexto, o governo petista sempre optou por dar razão aos adversários do mercado livre, principalmente as distribuidoras de energia elétrica.
No Governo do presidente Michel Temer, a mudança de enfoque foi total, principalmente considerando que o secretário-executivo do MME, Paulo Pedrosa, foi durante muitos anos presidente executivo de duas das associações empresariais do setor elétrico mais relacionadas com o mercado livre de energia elétrica. Primeiramente da Abraceel e, em seguida, da Abrace, que reúne os grandes consumidores industriais e consumidores livres.
Além disso, foi observado que a nota técnica é assinada por dois funcionários qualificados lotados na Secretaria Executiva do ministério: Rutelly Marques da Silva, chefe da Assessoria Especial em Acompanhamento de Programas Estruturantes, e Paulo Félix Gabardo, chefe da Assessoria Especial em Assuntos Regulatórios, sendo que Rutelly, há alguns anos, exercia uma importante função na assessoria técnica do Ministério da Fazenda e, nessa condição, era claramente favorável à ampliação do mercado livre, batendo de frente com a posição conservadora do MME e por tabela do próprio PT. Também demorou um pouco, mas os argumentos de Rutelly acabaram prevalecendo, pois ele entende há muitos anos que o ML é fundamental no aumento da eficiência da economia e na busca da competitividade.
“Se bem estruturado e implantado, o mercado livre é uma oportunidade para reduzir gastos com energia elétrica uma vez que permite maior flexibilidade e gestão de riscos, o que aumenta a eficiência econômica no setor elétrico e a produtividade das empresas, além de produzir um setor elétrico capaz de adaptar-se rapidamente à evolução tecnológica que deverá ser a tônica dos próximos anos. Mesmo que o consumidor não troque de provedor de
energia elétrica com frequência, essa possibilidade tende a incentivar maior eficiência na contratação e gestão pelo seu supridor atual porque aumenta o que a teoria econômica denomina de contestabilidade do mercado”, destaca a nota técnica do MME.
O MME gostaria de ouvir o que a sociedade tem a dizer a respeito de muita coisa relacionada com o mercado livre. O questionário que integra o processo de consulta pública reúne muitas perguntas elaboradas pelo Governo. O MME quer saber, por exemplo, qual o nível de conhecimento da sociedade sobre as alternativas de fornecimento de
energia elétrica e sobre a liberdade de escolha do fornecedor de energia elétrica com o qual firmará contrato de compra. “Há riscos econômicos e financeiros envolvidos no mercado livre?”, pergunta o MME, que também gostaria de saber se é necessária a revisão da atual estrutura tarifária e qual deve ser o intervalo de formação de preços e tarifas a serem percebidos pelos consumidores nos mercados atacadistas e varejista de energia elétrica: diário? horário?
Na consulta pública, os técnicos do MME também querem saber o que os diversos públicos interessados no assunto pensam sobre o atual modelo de renovação das concessões e das autorizações de geração de energia elétrica e se ele é aderente à expansão do mercado livre. Algumas questões específicas do ML também geram dúvidas no MME. Por exemplo: a eventual expansão do mercado livre aumenta as responsabilidades dos agentes na gestão da comercialização?
Nessa linha, o MME também pergunta se é necessário reforçar os requisitos para autorizar agentes habilitados a vender energia elétrica diretamente aos consumidores. Não é uma pergunta qualquer, pois, há muitos anos, discute-se na área de energia se um agente de comercialização pode receber autorização da Aneel para operar com base numa empresa que foi constituída na Junta Comercial com capital de R$ 5 mil ou R$ 10 mil, sendo que opera no mercado faturas de dezenas de milhões de reais. “Como lidar com eventuais saídas repentinas e falências de vendedores do mercado?”, indaga a consulta pública.
Além disso, o Governo levanta outra questão relevante: “A migração para o mercado livre deve ser opcional ou compulsória? Ou seja, deve ser mantida a possibilidade de o consumidor optar pelo mercado regulado? Também quer saber se é preciso aprimorar as formas atuais de registro e monitoramento dos contratos do mercado livre e até mesmo o atual sistema de medição e faturamento. Uma outra pergunta do MME também toca numa ferida exposta: como lidar com a inadimplência do mercado e com suas implicações na possibilidade de corte no fornecimento? E o mecanismo de depósitos de garantias na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) precisa ser ajustado em caso de ampliação do mercado livre?
São muitas as questões levantadas pelo MME. E todas elas precisarão ser respondidas pelos agentes interessados, pois o Governo não tem qualquer tipo de interesse em dar um passo maior do que a perna. É por isso que no questionário formulado pelo MME, pergunta-se como lidar com o aumento dos riscos de sobrecontratação das distribuidoras e de descontratação dos geradores? E também se é possível concatenar a expansão do mercado livre com o vencimento ou redução da energia contratada pelas distribuidoras.
Existe uma questão que o ML nunca soube responder de forma precisa que é a sua participação na expansão da oferta. Agora, o Governo considera fundamental avaliar o impacto da redução do mercado regulado no financiamento dos novos projetos de geração, uma vez que o mercado regulado é o principal garantidor da expansão da oferta porque oferece contratos de longo prazo aos geradores. Nesse contexto, a consulta pública aberta pelo MME gostaria de receber contribuições que indicassem caminhos razoáveis para tratar da participação do ML na expansão da oferta. E também pergunta se deve haver alguma obrigação de contratação de longo prazo para os consumidores.
O mercado livre, há anos, reclama da intervenção (que considera indevida) do ONS na formação dos preços, através de modelos computacionais. “Como deve ser a formação do preço do mercado de curto prazo para aumentar o papel do mercado livre na expansão da oferta?”, indaga o MME, que também faz uma provocação, questionando se uma bolsa de energia elétrica deve ser criada para complementar os sinais do mercado bilateral de contratos para garantir a expansão.
Há poucos anos, quando era presidente do Conselho de Administração da CCEE, o atual diretor-geral do ONS, Luiz Eduardo Barata, estimulou a criação de uma bolsa de energia, com participação acionária da Câmara, projeto que foi fortemente contestado pelos agentes do mercado livre, sob o argumento que a CCEE não tinha como atribuição ser uma bolsa de energia. A Abraceel levou o assunto ao conhecimento do então secretário-executivo do MME, Márcio Zimmermann, e a ideia da bolsa de energia foi imediatamente desidratada e morreu em poucos dias.