União Energia quer voltar à negociação com CCEE e credores
Maurício Corrêa, de Brasília —
Excluída da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), em 2010, a União Energia — uma das primeiras comercializadoras a atuar no País — quer fechar um acordo com seus credores e acertar o seu nome na praça. Segundo revelou a este site o fundador e controlador da União, Francisco de Lavor, a sua proposta consiste basicamente em calcular a dívida da comercializadora em volumes de energia, multiplicando pelo valor do PLD da época. O pagamento final seria expurgado das multas e penalidades previstas na legislação da época, as quais ele considera exageradas e sem aderência à realidade das empresas.
Segundo Francisco de Lavor, que no mercado é mais conhecido como “Chico”, a dívida original, que era de R$ 6 milhões, cresceu na forma de uma bola de neve, face às multas e penalidades impostas pelas normas “indevidas” que existiam na CCEE e chegou a valores astronômicos, impossíveis de serem pagos pela maior parte das empresas.
Ele alegou que, logo após a exclusão da União como agente da CCEE, por decisão da Aneel, a própria Câmara reconheceu que a cobrança de multas e penalidades em cascata, consistindo em 5% de aporte de garantias, 5% da liquidação financeira e juros de mora de 2%, era um absurdo e alterou a regra das penalidades, reduzindo-as para um patamar muito mais baixo, de 2%.
Mais tarde, o próprio mecanismo de garantias financeiras do mercado de curto prazo foi aperfeiçoado e o que existe hoje não guarda mais qualquer semelhança com o que existia naquele momento. Na visão do controlador da União Energia, houve uma total falta de isonomia entre o tratamento dado à sua empresa e outras que operam no mercado.
Um caso acontecido com a Petrobras é emblemático em toda a argumentação oferecida por Chico de Lavor. Por isso, ele praticamente decorou quase todo o livro “Desafios do Regulador”, lançado em 2009 por Jerson Kelman, ex-diretor-geral da Aneel e da Ana. Nesse livro, Kelman detalha um fato acontecido com a Petrobras e que Lavor entende que se aplica ao caso que envolve a União Energia.
No início de 2008, a situação hidrológica era muito difícil e havia efetivo risco de racionamento. As térmicas da Petrobras foram chamadas a gerar energia, para economizar água nos reservatórios. Descobriu-se que de uma capacidade total de 12 mil megawatts, as térmicas da Petrobras só estavam em condições de produzir um pouco mais de 4,5 mil MW.
Com a escassez, o PLD disparou e afetou todo mundo, atingindo o valor de R$ 569,59 o MWh. Indústrias mais desesperadas chegaram a pagar a bagatela de R$ 800,00 por MWh, no horário de pico, como cita Kelman, quando no racionamento de 2001 o preço bateu em R$ 460,00 por MWh. É verdade que logo depois São Pedro mandou chuva em quantidade e a questão foi resolvida, sem racionamento. Mas o estrago já estava feito.
Em seu livro, Kelman revela que, em agosto e setembro de 2006, já havia acontecido um outro problema grave com as térmicas da Petrobras. “O custo marginal de operação subiu, como é normal nessa época do ano, e o ONS despachou as termelétricas a gás que estavam no deck. Porém, como não havia gás, essas termelétricas simplesmente se declararam indisponíveis e deixaram de gerar, só na primeira quinzena de setembro, 4.280 MWmédios. Para as termelétricas, esse fiasco não causava problemas: o contrato de gás tinha uma cláusula que obrigava a Petrobras, nesses casos, a pagar o custo da energia que a usina tinha que comprar no mercado de curto prazo. Mas o default comprometia a confiabilidade do sistema”.
Em seguida, o ex-diretor geral da Aneel disse que discutiu a questão com dois colegas da agência reguladora, “dois técnicos competentes”: Rui Altieri, superintendente de Regulação da Geração, e Edvaldo Santana, que ocupava o cargo de diretor. Altieri, por coincidência, hoje é o presidente do Conselho de Administração da CCEE e, nessa condição, poderá dizer se a Câmara quer ouvir a proposta que Lavor, da União, tem a apresentar.
Para o empresário, quando a Petrobras recebeu o comando do ONS, em 2006, para efetuar um despacho simultâneo de suas térmicas, devido à falta de chuvas, a estatal precisava ter disponibilidade de gás. Mas não tinha. “Um teste feito pela Aneel, em 13 usinas térmicas da Petrobras, concluiu então que havia um déficit de 3,6 mil megawatts médios de energia. Não me consta que a Petrobras tenha sido penalizada por falta de lastro e que a CCEE tenha sido rigorosa com ela como aconteceu depois com a União. Esse tipo de coisa é que é doloroso observar. Você leva toda uma vida para construir um nome na área empresarial e depois descobre que uma estatal recebe um tratamento diferente de uma empresa privada. O tratamento foi absurdamente desigual. Eu gostaria de ter tido a mesma boa vontade que as autoridades do setor elétrico, na época, tiveram com a Petrobras”, reclamou Chico.
“Creio que há condições para rever todo o processo, com base numa outra interpretação. Estou totalmente disposto a reabrir o diálogo, não apenas com as autoridades, mas, também, com os credores. E, diante do novo quadro, entendo que há uma chance, sim, para que a União Energia se acerte com aqueles que tenham sido eventualmente prejudicados. Posso garantir que toda a situação que levou à exclusão da União foi absolutamente involuntária da minha parte, pois nunca tive qualquer tipo de intenção de prejudicar ninguém. Mas é preciso compreensão para o fato que uma dívida que originalmente era de R$ 6 milhões não pode subir como um foguete e atingir níveis astronômicos. Isto não existe em nenhum lugar do mundo”, argumentou Chico.
Quando ocorreu o fato que levou à paralisação das atividades da União, a comercializadora era uma das cinco maiores do mercado. Chico, aliás, é um “self-made man” clássico. Nascido em uma família pobre do Ceará, foi para São Paulo em um pau de arara e começou a trabalhar ainda garoto, como engraxate, auxiliar de padeiro e office-boy, até o dia em que começou a trabalhar no frigorífico Swift Armour como auxiliar de operações na área de commodities.
Daí para operador do mercado foi um pulo. Em 1983, ele fundou a União Corretora, que ainda atua na área de commodities agrícolas e que chegou a ser a maior do País durante vários anos. Com o surgimento do mercado livre de energia elétrica e, logo após, com a crise provocada pelo racionamento de 2001, ele percebeu que havia uma possibilidade de atuação no mercado dos certificados de energia que podiam ser trocados entre as empresas que tinham disponibilidade de energia e aquelas que precisavam comprar, para se enquadrar nas rígidas normas do racionamento. A União Energia surgiu nesse vácuo e cresceu bastante.
No final de 2007 e início de 2008, a União Energia precisava recompor a sua média móvel, um procedimento absolutamente legal que não guardava qualquer relação com a energia negociada no mês. Nesse mesmo período, como Kelman explicou no livro, havia uma crise no abastecimento de gás natural porque a Petrobras, que operava usinas do tipo merchant, vendeu uma quantidade superior a sua capacidade de entrega de gás.
Para recompor a média móvel, a União realizou vários leilões destinados à compra de energia, inclusive sem fixação de preço máximo. Não apareceram agentes vendedores. “Em consequência, a CCEE passou a emitir, a cada mês, termos de notificação para a cobrança de penalidades e multas, por falta de lastro, contra a União. Mesmo tendo apresentado as justificativas do próprio ONS, em relação ao gás da Petrobras, ainda assim a CCEE ignorou os fatos”, explicou o empresário.
Conforme explicou, entre abril de 2008 e dezembro de 2009, a União Energia pagou cerca de R$ 58 milhões à CCEE. “Não adiantava nada, pois as multas e penalidades cumulativas aplicadas pela CCEE superavam o patamar de 100% ao ano e a dívida não parava de crescer. Era mais ou menos como enxugar gelo”.
De fato, quando se vê um gráfico feito pela União, mostrando a composição do débito e como ele foi aumentando na forma de bola de neve, está bastante claro que o valor arbitrado pela CCEE, com todas as penalidades da época, formava uma espécie de montanha com 2 mil metros pairando de forma ameaçadora sobre um pacato vale suíço. No final de 2010, a diretoria da Aneel lavou as mãos e suspendeu a autorização da União para comercializar energia no mercado livre.
“A questão da União infelizmente tomou um viés emocional. O mercado livre de energia elétrica ainda era muito recente e eu fui chamado de muita coisa que nem dá para citar numa entrevista. Na época, havia muita disposição da minha parte para negociar um acordo, mas também havia alguns que se sentiam como uma espécie de justiceiros na área institucional da área de energia e que entendiam que a União deveria ser simplesmente punida. Nunca ouviram pacientemente o que eu tinha a dizer. Entendo que o País mudou e essa questão pode ser recolocada na mesa, para um entendimento em bases racionais, sem o calor da emoção. Não culpo ninguém, a CCEE ou a Aneel. O tempo passou, os cargos são ocupados por outras pessoas. Só quero a oportunidade de um novo entendimento. Acho que isso é plenamente possível”, afirmou.
Francisco de Lavor está particularmente animado com uma decisão recente da 7ª Vara da Justiça Empresarial de São Paulo, que acatou os argumentos de uma empresa do agronegócio que está em recuperação judicial e que no entanto havia sido impedida pela CCEE de participar do mercado livre de energia. Os advogados que trabalharam no caso estão convictos que a CCEE, embora seja uma pessoa jurídica de direito privado, reúne algumas características diferentes, pois tem grande influência do Estado, o que acaba gerando falta de isonomia no tratamento aos agentes.
”É um caso rigorosamente igual ao da União, de falta de isonomia entre os agentes. Por isso, entendo que é plenamente possível rever a situação da minha empresa perante a CCEE e os respectivos credores, pois não pode existir um tratamento diferenciado para um agente público e um privado em situações que são iguais”, explicou o controlador da União. “Não estou querendo briga com a CCEE. Ao contrário, tenho muito respeito pela Câmara, que também evoluiu muito ao longo dos anos. Estou querendo construir e, nesse contexto, estou aberto a uma revisão da questão. Gostaria muito de ser novamente ouvido pela CCEE”, justificou.
Um outro exemplo que ele cita de desigualdade no tratamento entre empresas públicas e privadas é o da Eletrobras, que recebeu uma multa da CCEE de R$ 12 milhões em decorrência de atraso no depósito de garantias financeiras por operações realizadas em 2014, no Mercado de Curto Prazo.
Quando a questão foi analisada pela diretoria da Aneel, esta entendeu que não houve descumprimento da obrigação por parte da Eletrobras e, sim, apenas um atraso no pagamento das garantias. “Com essa interpretação mais carinhosa por parte da Aneel, a multa da Eletrobras virou apenas uma advertência”, explicou Lavor, repetindo que as autoridades do setor elétrico não podem tratar agentes privados e públicos de forma diferente. “Eu gostaria de ter a mesma compreensão para o caso da União”.
Ele explicou que o caso da União já foi replicado por várias empresas, ao longo dos anos, e “todas elas estão aí, operando normalmente”. Por isso, ele não vê motivo para que a União continue a ser punida, principalmente porque, como alega, a sua empresa foi castigada com um arcabouço legal que nem existe mais, multiplicando a dívida por mais de 100 vezes.
Em 28 de março de 2014, Edvaldo Alves de Santana, que tinha sido diretor da Aneel, enviou uma correspondência à União, por solicitação da empresa, enfatizando que “a dinâmica dos processos na Aneel, em especial os associados ao mercado, pode ter levado a situações em que uma dada decisão, para casos semelhantes, tenha sido diferente, mas que decorreu do aprendizado e de outros elementos. Por isso, é sempre mais razoável que todas essas discussões ocorram no âmbito administrativo. A ideia básica é contribuir com a solução do problema, que, na minha opinião, não poderia ter chegado no ponto que chegou”.
Segundo o próprio Edvaldo reconheceu, a prática da média móvel alegada pela União era normal e regulada pela Aneel. Ele também disse que a Petrobras, ao descumprir um termo de compromisso firmado com a Aneel, em consequência da falta de gás para suas térmicas, recebeu uma multa de R$ 80 milhões. Ele foi relator desse caso e disse, na mesma correspondência, que “a penalidade não foi por inadimplência no mercado de curto prazo, mas pelo não cumprimento do termo de compromisso”. Em outras palavras, nunca se cogitou de excluir a Petrobras do mercado.
“A Aneel, como pode ser verificado pelas decisões que tomou, jamais escondeu de quem quer que seja os prejuízos ao sistema elétrico causados pela Petrobras, dada a falta de gás natural, tanto que a sua decisão foi a da imediata retirada das usinas da formação da oferta de energia, o que depois resultou no termo de compromisso”, explicou o ex-diretor da Aneel, hoje consultor de empresas.
A questão, como não poderia deixar de ser, foi judicializada. Em 13 de abril de 2011, o juiz federal Antônio Corrêa, da 9ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, assinou uma decisão na qual reconhece que a exclusão da União da CCEE foi anormal.
“Verifico claro excesso de poder por parte da CCEE, que não administrou corretamente o programa”, definiu o magistrado, enfatizando que houve uma outra “questão nebulosa” que era a imposição de juros e multas de forma capitalizada. “Não há explicação convincente para a adoção de que esteja amparada em norma legislada”.
Além disso, o juiz federal alegou que a CCEE colocou-se como tribunal para executar as suas decisões, “com o gravame de criar prejuízo de envergadura para os que integram o sistema. Não se concebe que alguém possa agir como órgão decisório que seja equivalente a tribunal porque se há conflito somente mediante transição, arbitragem ou provocação do Poder Judiciário é que poderá ser composto”.
O juiz percebeu que a CCEE, ao mesmo tempo, operava em vários níveis: era um órgão que tomava decisões, emitia multas, e também era um tribunal, julgando os agentes, com o que ele não concordava. Em sua conclusão, o juiz determinou que o ato de exclusão da União deveria ser suspenso e que a comercializadora deveria voltar ao sistema da CCEE. Lavor não sabe explicar a razão, mas disse que “nunca aconteceu”.
Ele alegou que teve enormes prejuízos não apenas financeiros, mas, também, morais, e que foi convidado a se retirar da associação dos comercializadores, a Abraceel, para não ser expulso. Ele tinha sido vice-presidente conselheiro da própria associação por dois mandatos. “Sei que é difícil dizer isto, pois tem gente que jamais vai entender, mas o fato concreto é que eu também fui vítima nesse processo”.
“De repente, virei alguém com uma espécie de doença contagiosa e era muito perigoso outra pessoa se aproximar de mim. Mas vendo de uma forma mais madura, todos nós sabemos que o mundo não é exatamente assim, não é? Não sou um bandido ou um marginal, embora tenha até sido tratado injustamente dessa forma por alguns. Por isso, gostaria enormemente de ter um entendimento com a CCEE e os credores, não apenas para limpar o nome da minha empresa, mas, também, para recolocar o meu próprio nome no seu devido lugar. Estou falando de 50 anos de luta, de muito trabalho e compromissos. Tudo o que aconteceu com a União pode ser revisto, não vejo problema. Não busco privilégios para mim ou para a União Energia. Só temos que negociar os termos adequados de um entendimento, que seja bom para todas as partes envolvidas”, declarou.
“Hoje, o mercado de energia elétrica está totalmente consolidado e os problemas são resolvidos na base da racionalidade e não mais da emoção, como foi o caso da União. Sem dúvida, o mercado está muito mais maduro e por isso tenho confiança que há clima para que seja possível sentar numa mesa com todos os atores envolvidos e conversar, na busca de um resultado final que é o entendimento, não obstante os prejuízos já causados”, disse Chico de Lavor.