Portabilidade tem audiência pública, mas antigas dúvidas permanecem
Maurício Corrêa, de Brasília —
O deputado Fábio Garcia (PSB-MT) pretende concluir ainda no mês de junho o seu relatório sobre o PL 1917, de 2015, que prevê a portabilidade da conta de luz. Ele entende que é fundamental o Congresso gastar o segundo semestre para deliberar sobre a matéria, devido às limitações de tempo que haverá, em 2018, com o calendário eleitoral. “Não podemos desperdiçar em nenhuma hipótese a janela de oportunidade aberta em 2017 para apreciar e aprovar o projeto”, afirmou Garcia.
Para Garcia, o PL 1917 é a proposta em tramitação no Congresso Nacional que mais mexe com a estrutura do setor elétrico brasileiro, o que justifica debatê-la à exaustão. “O setor é complexo e mudanças desse tipo precisam mesmo ser discutidas, para oferecer a devida segurança jurídica e regulatória”, afirmou, salientando que os principais desafios consistem em resolver os obstáculos que existem quanto à expansão da geração, a sobrecontratação por parte das distribuidoras e os subsídios em geral aplicados no SEB.
Este site apurou que ele considera difícil aprovar tão cedo a proposta do jeito em que se encontra hoje. Por sso, deverá aproveitar uma sugestão feita pelo presidente da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape), Mário Luiz Menel da Cunha, de fatiar o processo em três etapas, aumentando assim as chances de sucesso no curto prazo, pois já garantiria, então, pelo menos um cronograma de abertura.
Na audiência pública realizada nesta quarta-feira, 31 de maio, na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, para discutir exclusivamente o PL 1917, Menel fugiu ao lugar comum das demais associações, de defesa dos interesses de cada segmento, mostrando uma visão de futuro na distribuição da energia elétrica, que vai se caracterizar pelos avanços tecnológicos, utilização de sensores inteligentes, comandos através de celulares e facilidades para controlar o suprimento.
Ou seja, o segmento de distribuição, da forma como hoje se conhece, será totalmente jurássico dentro de pouco tempo. “O setor elétrico de amanhã terá unidades conectadas, com muita facilidade no uso de aplicativos”, explicou, frisando que a abertura do mercado livre insere-se nesse contexto de modernização do setor elétrico brasileiro.
A área de Distribuição, para Menel, deverá sofrer muitos impactos e, na mudança de perfil, inclusive deverá perder receitas, razão pela qual precisará aumentar o seu faturamento buscando outras alternativas, como o oferecimento de serviços. “Na Europa, as empresas estão se voltando para os serviços e deixando o conceito de só entregar energia elétrica”, declarou.
Tendo sido sócio de uma das quatro primeiras comercializadoras brasileiras (a Trade Energy, hoje incorporada à Tradener, que foi a pioneira), Menel vem pensando a respeito do futuro do mercado livre há bastante tempo. Nessa reflexão, ele entende que a liberalização é possível, até porque o Brasil está muito atrasado nesse campo e precisa competir em condições de igualdade com outros países.
Assim, para o presidente da Abiape e do Fase (Fórum das Associações do Setor Elétrico), é preciso enfrentar uma corrida de obstáculos, superando as dificuldades referentes às questões jurídicas, à saúde financeira das distribuidoras, à viabilização da expansão da geração e o tratamento a ser dado aos contratos já existentes, entre outras situações que precisarão ser equacionadas pelo mercado e pelas autoridades do setor elétrico.
As três etapas propostas por Menel e que deverão ser acatadas pelo relator Fábio Garcia consistem na definição dos limites da expansão do ML; na identificação dos problemas e soluções, com a definição dos comandos legais para resolvê-los; e na definição dos comandos regulatórios. Para o presidente da Abiape e Fase, é possível, sim, aumentar a participação do ML — que hoje gira em torno de 28% — mas o passo à frente precisa ser efetuado com cuidados, para não gerar retrocessos.
Se aprovado e transformado em lei, o PL 1917 representará uma mudança profunda poucas vezes vista no setor elétrico brasileiro. Permitirá que todos os consumidores de energia elétrica possam trocar de supridor a qualquer momento, do modo como já ocorre hoje, por exemplo, com os consumidores de telecomunicações ou de planos de saúde.
Embora funcione há muito tempo em vários países, sem dificuldade, o que se viu na audiência pública é que não será fácil alterar o setor elétrico dessa forma radical, mesmo fixando-se um cronograma que viabilize uma abertura ao longo de vários anos. Em diversos aspectos, há uma enorme convergência por parte das associações empresariais e mesmo dos organismos institucionais. Todo mundo, por exemplo, concorda que é necessário ampliar o mercado livre de energia elétrica e que é necessário abrir mais espaços para que os consumidores possam tomar decisões, inclusive na escolha do supridor. A dificuldade é como se fazer isto, conciliando os interesses de geradores, comercializadores, distribuidores e grandes consumidores industriais.
O presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), Reginaldo Medeiros, tem uma justificada impaciência e desconfiança quanto ao discurso tradicional sobre a ampliação do ML, que sempre esbarra em alguma ponderação intransponível. Na AP, ele resumiu bem a questão, quando lembrou que, há duas décadas, se discute a redução dos limites de potência e tensão e até hoje não se avançou um milímetro sequer em relação a isso, pois sempre surgem filigranas jurídicas, técnicas ou políticas que impedem a ampliação do mercado livre e a extensão dos seus benefícios a maior número de consumidores.
O PL 1917, na sua avaliação, é uma “oportunidade única” para mudar o modelo e retomar o espírito liberal das primeiras decisões da agência reguladora, visando a “oferecer energia barata e competitiva aos consumidores”. Até mesmo a Abradee, associação que representa os distribuidores e que seriam os principais perdedores com uma eventual expansão do ML, garantiu na Câmara que nada tem contra essa ampliação. Apenas se preocupa como isso será feito.
Nelson Leite, presidente executivo da Abradee, argumentou que os recebíveis das distribuidoras fornecem o lastro para a expansão do setor elétrico. Na sua avaliação, também existem dúvidas quanto ao planejamento setorial. E citou uma questão que realmente é difícil de ser respondida: hoje, as distribuidoras precisam indicam ao MME qual a previsão de compra de energia elétrica daqui a cinco anos. Se em 2022, por hipótese, ocorrer a expansão do mercado livre, de acordo com o cronograma previsto pelo PL 1917, quais números as concessionárias deverão encaminhar, hoje, ao MME, considerando que as empresas não terão a mínima idéia de qual será a base de consumidores de cada uma.
Para a Abradee, o mercado livre somente poderia ser ampliado se observadas algumas pré-condições. Por exemplo: respeito aos contratos já assinados, como ficam os subsídios hoje concedidos às energias renováveis, remuneração adequada para o serviço de rede (considerando que haverá uma separação entre a distribuição da energia e a energia propriamente dita). “Tem que ter regras”, alertou Leite.
Ele citou um exemplo clássico para dizer que as distribuidoras não podem ficar só com o osso e as comercializadoras com o filé, lembrando o caso das comunidades pobres do Rio de Janeiro, nas quais o suprimento representa um enorme problema, sob todos os ângulos, principalmente com o furto puro e simples de energia elétrica, dificuldades de acesso aos morros devido às restrições dos chefes do crime, alto índice de inadimplência, etc.
O presidente da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia Elétrica (Apine), Guilherme Jorge Velho, se limitou a discutir aspectos técnicos do PL. Os artigos 11 e 12, por exemplo, propõem a possibilidade de contratação descentralizada de energia pelas distribuidoras. Ele não concorda com essa eventual decisão, sob o argumento que “a contratação centralizada pelas distribuidoras, para atendimento do mercado regulado, representou um avanço para o setor elétrico, já que permite melhores preços em função da concentração da competição, padronização de contratos e mecanismos de transferência de energia, dentre outras vantagens. A contratação centralizada deve, portanto, ser mantida”.
Os artigos 17, 18, 19 e 20 do PL estabelecem uma abertura total do mercado a partir de 1º de janeiro de 2022. O presidente da Apine, contudo, entende que “até o pleno equacionamento da expansão da oferta, com o mercado liberalizado, não é recomendável a redução total dos requisitos de elegibilidade por parte dos consumidores para opção de contratação do fornecimento de energia elétrica, já que as concessionárias de distribuição representam uma âncora importante para a expansão da geração. Além disso, a questão dos contratos legados requer equacionamento”.
O PL 1917 foi escrito sob forte inspiração da associação dos comercializadores, a Abraceel, que é a associação empresarial mais interessada na expansão do mercado livre.
Guilherme Velho, entretanto, propôs um novo cronograma de abertura, que é o seguinte: a partir de 1º de janeiro de 2021, seriam considerados consumidores livres aquele com nível de consumo de 2 mil kW, enquanto os consumidores especiais se situariam na faixa de 250 kW. A partir de 1º de janeiro de 2023, os limites cairiam para 1 mil kW no caso de consumidores livres, enquanto os da categoria especial seria das unidades consumidoras do tipo B3 de montante de uso contratado.
O secretário-executivo do MME, Paulo Pedrosa, falou em nome do ministro Fernando Bezerra Coelho Filho, que está fora de Brasília. Ele insistiu num discurso do ministério no sentido que o atual modelo está esgotado e que é necessário avançar numa agenda de convergência, dentro do Congresso Nacional, considerando que o PL 1917 altera o modelo do setor elétrico e o MME, no momento, também trabalha em uma proposta de novo modelo.
“Precisamos buscar o preço baixo pela eficiência e competição e não na marreta”, afirmou. No Governo Dilma, houve uma iniciativa de reduzir os valores das contas de luz, artificialmente, o que acabou contribuindo para o caos atual do setor elétrico brasileiro. Para Pedrosa, que é um executivo de visão liberal, a democracia econômica precisa caminhar junto com a democracia política.
Nesse contexto, ele vê com bons olhos o aumento do poder de decisão dos consumidores de energia elétrica, razão pela qual concorda com a expansão do mercado livre. “Hoje, há uma onda em favor dos consumidores”, disse, ao final, numa rápida entrevista coletiva.
Rui Altieri, presidente do Conselho de Administração da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), disse que o mercado livre tem que crescer de forma organizada, inclusive com fortes campanhas de esclarecimentos junto aos consumidores. Nas suas contas, os milhares de consumidores que estão aptos a migrar para o ACL vão congestionar a CCEE, o que mostra a necessidade de surgirem figuras intermediárias como os comercializadores varejistas, um tipo de agente que está travado no mercado e não consegue deslanchar.