Correr no vazio
Camila Schoti (*)
No futebol, todo atacante sabe que tem que correr no vazio para aumentar a chance de converter uma boa jogada em um gol. Se surgir algum espaço no jogo do mercado de gás natural, teremos as condições adequadas para que outros jogadores possam aproveitar a oportunidade?
Com um robusto plano de desinvestimentos que deverá alcançar parte de seus ativos de gás natural, a Petrobras parece se preparar para deixar de ser a única supridora do mercado brasileiro – uma janela de oportunidade almejada há anos por agentes de mercado, em especial consumidores. A tempestade perfeita que exige esforços e habilidade para tirá-la de uma crise sem precedentes é a mesma que abre o caminho para a diversificação da oferta de gás no país. A dúvida é se as condições atuais são suficientes para permitir que essas potenciais lacunas sejam preenchidas por outros players.
Assim, este artigo propõe uma reflexão inicial sobre barreiras que precisarão ser superadas nas principais etapas da cadeia produtiva do gás, da oferta ao consumo, até que o objetivo – a diversificação – seja alcançado.
Em complemento à oferta que poderá vir dos campos do Pré-Sal no longo prazo, novas alternativas poderão vir também – talvez em prazo mais curto – através da importação de Gás Natural Liquefeito (GNL) e (por que não?) da Bolívia, a partir do vencimento em 2019 de contratos existentes.
Um empreendedor que importar GNL precisará ter acesso a um terminal de regaseificação ou construir um, mas embora essa possibilidade pareça mais próxima de se tornar realidade do que há poucos anos, ela será concretizada apenas se o custo de uso de um terminal existente for competitivo ou se a construção de um novo terminal for economicamente viável.
Neste contexto, incentivos ao compartilhamento de terminais de regaseificação ou mecanismos que atribuam maior flexibilidade na gestão da comercialização, como a possibilidade de estocagem, a criação de um mercado secundário de gás natural e âncoras de consumo, podem contribuir para a diversificação da oferta.
Uma vez na costa (ou na fronteira), o gás natural importado precisará ser transportado até seu city gate de destino. Hoje toda a capacidade de transporte firme dos gasodutos existentes está contratada pela Petrobras e a menos que ela a ofereça ao mercado, qualquer novo empreendedor terá acesso intermitente aos gasodutos, em contratos interruptíveis, o que poderia dificultar a contratação de GNL ou do gás boliviano.
Importante ressaltar que, embora os dutos estejam integralmente contratados, existem estudos que indicam a existência de capacidade ociosa. Portanto, caso não haja livre acesso de fato e essa capacidade firme, dois aprimoramentos poderiam corrigir este entrave: a efetiva venda dos ativos de transporte pela Petrobras e a criação de um operador independente da malha de gasodutos. O operador buscaria garantir que o uso da malha fosse o maior possível, evitando, por exemplo, capacidade ociosa em dutos devido a contratos firmes não exercidos pelo carregador.
Solucionada a questão do acesso aos gasodutos, ainda seria preciso discutir as tarifas e o respectivo custo total para movimentar o gás de um determinado ponto a outro. Esta informação ainda não é trivial, já que não há clareza sobre a metodologia de cálculo de tarifas para gasodutos existentes, o que agrega maior complexidade e incerteza para a tomada de decisão de aquisição de contratos de GNL ou da Bolívia.
Além disso, se o livre acesso às malhas é uma condição necessária para a evolução do mercado de gás, não é suficiente. Igualmente importante é a viabilização de contratos de swap operacional de gás, hoje inviabilizados pela miopia fiscal, que gera riscos de custos tributários excessivos.
Equacionada a questão do transporte, quando o gás chega ao city gate de destino, ele passa a estar sob jurisdição dos governos e agências reguladoras estaduais, conforme define o artigo 25 da nossa Constituição. Por isso, cada estado deve definir (se ainda não o fez) as condições de atuação de consumidores livres, autoprodutores, autoimportadores, comercializadores e distribuidoras.
Os reguladores têm o dever legal de assegurar o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão das concessionárias de distribuição locais e, ao mesmo tempo, regulamentar o mercado livre.
O bom funcionamento dos mercados exige que tais regras tragam incentivos e liquidez às transações, sem criar barreiras à diversificação da oferta e ao gerenciamento de riscos aos agentes. Por exemplo, a imposição de limites mínimos de consumo ou de prazos de aviso prévio para comunicação de migração que não sejam aderentes à realidade do consumo industrial local criarão barreiras regulatórias que diminuirão o potencial de consumo neste mercado. Ainda, obrigações de assinatura de contratos de gás natural de prazo muito longos no mercado livre também podem inibir a migração, pois agregam incerteza e engessamento na gestão de suprimentos das indústrias.
Também são temerárias a vedação da possibilidade da figura do consumidorparcialmente livre – consagrada no setor elétrico – e a definição de critérios de maturidade para abertura do mercado, por exemplo, vinculando a possibilidade de migração à existência de um número mínimo de fornecedores. Na prática, isso pode vincular a possibilidade de comercialização por um novo supridor à existência de outros supridores, podendo reduzir a atratividade do negócio, seja porque exigirá esforço de coordenação entre partes concorrentes, seja porque pode reduzir o prêmio de risco do negócio. Caberá ao regulador apenas criar as condições para que a competição aconteça.
Todas essas etapas, e certamente algumas outras, como as tributárias, precisarão ser superadas para que alguém possa correr no espaço que pode ser aberto no mercado com um reposicionamento estratégico da Petrobras, mas ninguém faz gol ficando parado em campo.
O momento é oportuno para que agentes, formuladores de políticas, legisladores e reguladores driblem as barreiras impostas pela atual configuração do mercado e, em conjunto, realizem estes aprimoramentos mais rapidamente. Será preciso foco e movimentos coordenados, como quando se define uma tática para um jogo, pois ainda estamos falando de um mercado que permanece concentrado e verticalmente integrado e por isso exigirá esforços regulatórios significativos.
(*) Camila Schoti é Gerente de Energia da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livre (Abrace). Mestre em Economia pela Universidade de Brasília, fez cursos nas áreas de microeconomia e econometria na Universidade de Harvard, EUA, e de Regulação de Serviços Públicos de Energia no European University Institute, Itália.