Matriz energética brasileira: que caminho seguir?
Uma reflexão no ano comemorativo dos 30 anos da SBPE
Ivo Leandro Dorileo (*)
Adam Smith, o filósofo moral, fez-nos entender que os mercados não cuidam dos nossos netos e também, com muito pensar, concebemo-lo como “pai da sustentabilidade”.
Neste momento, invocá-lo traz à tona uma importante indagação: que futuro e que legado da matriz energética estamos preparando e deixando para o país?
Inegavelmente o Brasil ocupa uma posição favorável em termos de potencial energético; apenas em hidreletricidade somos o terceiro do mundo, com 3.040 TWh/ano; as reservas de petróleo e gás natural somam 12,5 bilhões de barris equivalentes de petróleo e 370 trilhões de m3, respectivamente; as reservas de urânio representam 309 mil toneladas.
Tudo isto pode conduzir à auto-suficiência para além do longo prazo. Num cenário como este, o Brasil apresenta metade da oferta interna de energia da América Latina, que corresponde a 2,1% da oferta interna mundial, e precisa melhorar indicadores que orientem, de fato, um desenvolvimento energético em favor dos cidadãos, como aumentar o consumo de eletricidade residencial per capita dos atuais 650 kWh, e a oferta interna de energia de 1,4 tonelada equivalente de petróleo por habitante – 30% menor que a da China.
Ainda, progressivamente, otimizar a oferta de energia para produzir uma unidade monetária na economia, hoje de 0,1 tonelada equivalente de petróleo para cada mil dólares gerados e incrementar a oferta de renováveis – especialmente biocombustíveis líquidos, confirmando sua capacidade produtiva.
Neste contexto planetário, a dialética do tema vai além da visão tecnicista e do real papel da energia como centro das atividades humanas, para alcançar novos paradigmas e o desenvolvimento de linhas energéticas que, necessariamente, tragam a mutação das sociedades na escala do mundo.
Na transição energética em que nos encontramos, onde há um grande entusiasmo sobre as fontes solar, eólica e da biomassa, principalmente, a maneira de lidarmos com esta situação determinará as mudanças desejadas, considerando a preservação de recursos, a promoção mais ativa de uso eficiente e racional de energia, incorporando-se custos socioambientais e tecnológicos nestas formas de energia renovável, favorecendo níveis adequados de investimento e um equilíbrio entre os recursos de oferta e os de demanda e, no final das contas, a produção e distribuição justa de riquezas.
Com efeito, a matriz energética além de contribuir, de maneira insubstituível, para uma boa gestão dos recursos naturais, realça as características de utilização da energia e, por complementaridade, junto com o capital, explica a dinâmica contemporânea, sujeita à concepção de “busca de alternativas energéticas”, após um mundo do “materialismo econômico” construído sobre a mecânica racional no século XIX, instaurando-se definitivamente os sistemas energéticos nas esferas das atividades humanas.
Para enfrentar com êxito a expansão do que podemos chamar de proto-matriz de novas energias renováveis requerem-se desafios para superação do modelo convencional e larga compreensão dos interesses nacionais, globais e corporativos.
Nesta perspectiva, não poderá haver regressão no nosso sistema energético, um dos mais avançados do mundo, mas, acelerar a introdução de novos mecanismos e instrumentos de planejamento ao invés de privilegiar o custo e eficácia de políticas tradicionais do setor energético que até aqui nos trouxeram impasses de toda ordem: econômicas e sociais, políticas e ambientais.
Se realmente desejamos uma matriz energética inclusiva em todas as dimensões de desenvolvimento socioeconômico, e renovável, precisamos valorizar um modelo de planejamento integrado de recursos em sinergia com o meio ambiente, com os setores de infraestrutura, principalmente o de recursos hídricos, que, verdadeiramente, incorpore cenários de planejamento dinâmicos e leve em conta, além dos fatores socioeconômicos, os hábitos de uso da energia, a preservação dos biomas no plano da biodiversidade, os custos sociais, os custos completos, a eficiência energética e a conservação dos recursos.
Com esta abordagem tornamo-nos capazes de promover o desenvolvimento das regiões atrasadas com a aplicação de recursos, e de proporcionar iniciativas renováveis com benefícios de redução de pobreza. O modelo provê serviços de energia às pessoas sem acesso, em áreas geograficamente dispersas; institui um padrão de integração regional e social e ajusta a sociedade industrial aos limites dos recursos do planeta.
Para isto devemos canalizar racionalmente nossos esforços para evoluir e obter resultados que, ao final, explicitem uma contabilidade real de qualidade de vida, de progresso social real, expresso na disponibilidade de energia, confiável e barata. Esta é a visão nobre da matriz energética.
No Plano Nacional de Energia 2050, documento complementar e com o objetivo de consolidar a matriz energética brasileira de longo prazo, uma das questões discutidas é o ritmo desejável de exploração dos potenciais e reservas, incluindo, ainda, a avaliação da expansão agrícola para fins energéticos.
O Brasil, com todos os seus caracteres privilegiados, pode romper o paradigma dos sistemas energéticos, em direção às energias renováveis, menos poluentes e descentralizadoras.
O novo cenário mundial aponta para a importância do uso das florestas para fins energéticos e da energia vegetal – uma singularidade dos países tropicais de clima úmido, constituindo-se na biomassa que carrega intrinsecamente o valor da terra, do meio físico e ecológico, que produz, além de energia, alimento em abundância.
Existe, no país, uma disponibilidade energética duradoura, repetitiva, que amplia as possibilidades do sistema existente com alternativas técnicas e socialmente aceitáveis, dando condições para que a própria sociedade brasileira resolva seus problemas com a produção intensiva e extensiva de “energia verde”.
Os sistemas agroenergéticos se prestam muito bem para este fim sob as mais diversas formas: quer sejam com florestas plantadas de eucalipto, quer com o aproveitamento do potencial técnico dos resíduos agrícolas das grandes lavouras de soja, milho, arroz, algodão, cana-de-açúcar e de variadas oleaginosas para produzir combustíveis mais avançados.
Continuamos procurando incessantemente novas formas e a melhor alocação de fontes de energia para suprir a demanda. A eloquência do sol nas regiões brasileiras e a energia da biomassa destes trópicos merecem muito mais que exercícios de projeção e programas de investimentos.
Pela sua magnitude e diversidade é uma questão inter-geracional do nosso sistema energético. Devem-se impulsionar o aproveitamento de resíduos agro-florestais e intensificar a exploração da fonte solar também para usos finais de aquecimento e refrigeração.
O estímulo aos carros elétricos é importante, considerando que as baterias aumentam extraordinariamente a autonomia a cada ano, e tem apresentado uma crescente densidade energética, hoje de 140 Wh/kg. Mas, do ponto de vista estratégico, em grande escala demandarão mais energia primária para produzir eletricidade.
Logo, neste caso, objetivos ambiciosos deverão permear a substituição de energéticos e a complementaridade entre eles, notadamente em relação ao etanol, que, se devidamente incentivado, poderá contar com o “auxílio luxuoso” do carro elétrico.
Sob esta análise, a inserção das fontes renováveis é imprescindível no Brasil, mas como “bem-estar objetivo”. Uma política energética neste sentido tem sua plena eficácia se mensurada em critérios múltiplos de universalização – atendimento à parcela da população sem eletricidade, crescimento econômico medido pelo aumento da qualidade de vida, criação de empregos e geração de renda, redução da pobreza, melhoramento das condições de habitação etc.
É dar uma moldura aos planos nacionais, realizados por especialistas com grande rigor científico, argumentações lógicas e estatísticas, que indiquem as mais adequadas e menos controversas “grandes escolhas nacionais”, mesmo que não estejam isentos das concepções, convenções e aspectos políticos.
Este avanço da matriz energética configura-se numa ampla articulação nacional, coordenada com os estados e municípios, para transitar na produção e utilização, em boa medida, dos recursos descentralizados, valendo-se das fontes de origem hídrica, eólica, solar e da biomassa, sem prescindir do petróleo, do gás natural, do urânio, e, fundamentalmente, da ampliação dos programas de eficiência energética em todos os setores da economia.
Estes desafios vencidos, paulatinamente, consolidarão os esforços e soluções encontradas até hoje, abrindo um novo ciclo para as novas fontes renováveis, e, neste caminho, ajudando a conter as emissões de gases de efeito estufa.
Assim, o problema não é somente agregar 60 mil MW de eletricidade e 138 milhões de toneladas equivalentes de petróleo e derivados à oferta no horizonte de 2027, conforme o Plano Decenal de Energia mais atual – um documento relevante para tomada de decisão.
Mas, é assumir que, de um extremo ao outro do espectro de fontes da matriz energética, temos que adotar estratégias inteligentes, pesquisar novas soluções e tomar decisões consistentes com relação às políticas setoriais e encontrar os melhores cenários que influenciem positivamente sobre a escala e a distribuição de impactos globais e regionais na produção e utilização de energia.
No longo prazo, realizar uma transição moderada, sistêmica, de prudentes proporções custos-benefícios, introduzindo flexibilidade, adaptabilidade e outras exigências presentes pela restrição de recursos, com formas mais bem estruturadas de apoio para uma economia de baixo carbono, para que nossos filhos e netos usufruam e se disponham a continuar a fazê-la.
(*) Ivo Leandro Dorileo é Presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético – SBPE