Uma reflexão sobre a reorganização do setor elétrico (*)
Zilmar José de Souza (**)
Pouco mais de um ano depois de renovar alguns estrategistas na gestão da política energética no país, os agentes do setor elétrico conheceram a proposta de aprimoramento do marco legal do setor elétrico brasileiro, apresentado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), na forma da Consulta Pública n. 33/2017.
Há mérito em se colocar o texto para contribuições dos agentes, o que poderá dar mais consistência e coesão às propostas, após passar pelo processo de Consulta Pública, chegando ao Congresso mais azeitado, caso se opte apresentar os resultados da Consulta Pública na forma de uma Medida Provisória. O prazo para contribuição, até 4 de agosto próximo, pode ser considerado exíguo, mas seus defensores justificam que isto ocorre pela necessidade de se aprovar as alterações em lei ainda em 2017.
A Consulta Pública é subsidiada por dois documentos principais. O primeiro é o Relatório “Princípios para Reorganização do Setor Elétrico Brasileiro”, que apresenta um conjunto de princípios a seguir e, o segundo, é a Nota Técnica n. 5/2017/AEREG/SE, que traz um detalhamento da proposta do MME para a efetiva reorganização do Setor Elétrico Brasileiro.
Observa-se que o Relatório e a Nota Técnica colocam, de forma geral, pontos que o setor elétrico e representantes das fontes renováveis têm discutido há tempo. Quando aborda a eficiência alocativa, por exemplo, cita-se a necessidade de se buscar mecanismos eficientes de formação de preços, para as atividades sujeitas à competição, e de tarifação, para as atividades reguladas, que reflitam as condições vigentes no mercado e as oportunidades de aproveitamento econômico das diferentes fontes de energia.
Os mecanismos de formação de preços devem considerar as externalidades dessas fontes, tanto com relação aos aspectos socioambientais, quanto aos do sistema elétrico, pleito antigo e perene dos representantes de fontes renováveis como a biomassa. Neste escopo, foi apresentada uma proposta que procura reconhecer os atributos das diferentes fontes: na contratação de novos empreendimentos para aquisição de lastro de geração, deverão ser considerados os atributos técnicos e físicos dos empreendimentos habilitados no certame, tais como a contribuição para redução das perdas de energia elétrica e a economicidade proporcionada ao sistema de transmissão ou de distribuição necessário ao escoamento da energia elétrica gerada.
A intenção de tratar as externalidades de cada fonte é muito bem-vinda. O desafio será garantir que esses atributos sejam efetivamente e rapidamente regulamentados, visto que, desde 2004, com o advento do que chamaremos daqui a pouco de “velho modelo”, o pleito de se observar os atributos de cada fonte nunca foi considerado a contento no marco regulatório do setor elétrico.
Segundo os documentos, qualquer incentivo deve ter objetivo claramente definido, contemplar as diferenciações de acordo com fatores particulares, e ser de duração limitada. Nesta linha, em vez de descontos no uso da rede pelos geradores e consumidores de energia renovável, a proposta é termos o pagamento de um prêmio de estímulo às renováveis associado à energia fisicamente produzida pelo gerador. A fórmula de se calcular esse prêmio ainda precisa ser mais didática, pois o texto da Nota Técnica está hermético ao tratar o tema.
Ainda com relação ao tema, os incentivos passam a ter data de expiração. As outorgas atuais poderão continuar a ter o incentivo do desconto no uso da rede até o término de seu prazo. Já as novas outorgas serão incentivadas até 2030, ou seja, receberão o citado prêmio, independentemente da data de entrada em operação.
O MME também apresentou proposta de remoção de barreiras à participação de agentes no mercado, como a redução gradativa da exigência de carga para contratar energia elétrica no mercado livre, dando fim ao que chamou de reservas de mercado, como o segmento do consumidor especial, e definindo critérios de corte para representação direta no mercado, delimitando a fronteira entre atacado e varejo.
Para as fontes renováveis, por exemplo, o segmento do consumidor especial sempre foi importante na viabilização de novos empreendimentos, pois o consumidor especial essencialmente é aquele que tem o direito de participar do mercado livre ao adquirir energia de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) ou de fontes incentivadas especiais (eólica, biomassa ou solar). Passando a proposta do MME, no futuro teremos um mercado mais aberto e claro na operação, mas, sem dúvida, mais desafiador para as fontes renováveis.
Ponto claramente positivo é a busca pelo destravamento das liquidações financeiras no Mercado de Curto Prazo (MCP). Desenhou-se uma nova proposta para se tentar a desjudicialização quanto ao risco hidrológico no Mercado de Curto Prazo, onde os produtores com créditos de geração estão sem recebê-los plenamente há quase dois anos, por conta de liminares que protegem os devedores no MCP.
Será um ponto de atenção para acompanharmos se desta vez conseguiremos vencer o problema da judicialização no MCP. Todo esforço institucional tem que ser para resolver a judicialização que ocorreu em torno do tema do risco hidrológico e se arrasta – repetimos – por quase dois anos. Se quisermos um mercado livre robusto, investidores em energia renovável confiantes no modelo institucional, a liquidação financeira no MCP tem que funcionar. Esta deve ser a diretriz principal e inicial para se começar a reforma do setor elétrico.
Preocupa a menção à definição posterior de parâmetros basilares pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Espera-se que os parâmetros já estejam, na medida do possível, previstos numa futura Medida Provisória resultante da Consulta Pública. Caso contrário, haverá o risco de a Aneel estabelecer parâmetros que não venham a ser aceitos pelos geradores hidrelétricos devedores. As regras devem ser suficientes para garantir o êxito na proposta. Reforça-se a necessidade de solução definitiva para a judicialização do risco hidrológico.
Outro importante ponto de atenção é acompanhar como será regulamentada a questão da separação do lastro e energia. Os dois produtos (lastro e energia) não serão comercializados de forma integrada como é hoje, mas, sim, separados. Coloca-se a possibilidade de contratação da confiabilidade (ou adequabilidade) sistêmica – o lastro – separada da gestão do risco comercial de cada agente –a energia, que vem sendo discutida no setor como a contratação separada de lastro e energia.
De acordo com a Nota Técnica do MME, o valor do lastro pode ser inferior à necessidade total de remuneração que um projeto necessita para se viabilizar. A contratação de longo prazo de forma centralizada (em leilões), a princípio, continuará existindo, mas apenas na parcela chamada lastro, que será um “bem comum” custeado por todos os beneficiários, propiciando uma receita previsível ao gerador.
Já a parcela energia será negociada no mercado em geral, com características de commodity, mas não se sabe a configuração de como se dará essa negociação, gerando dúvidas iniciais por parte dos investidores em geração. As observações dos investidores em geração de energia e, principalmente, dos órgãos financiadores serão essenciais para o aprimoramento/desenvolvimento da proposta de separação contratual do lastro da energia. É necessário continuar garantindo a financiabilidade da expansão.
Em síntese, a Consulta Pública representa uma iniciativa importante, pois busca modernizar o ambiente institucional do setor elétrico brasileiro e afastar o cenário de judicialização criado nos últimos anos. O não pagamento de créditos no Mercado de Curto Prazo, por conta da judicialização, é algo que não pode continuar. Resolver a questão do MCP oxigenará o setor elétrico e a confiança nas Instituições.
A boa condução na discussão com a sociedade sobre os outros pontos da proposta também será crucial para construirmos um futuro cenário de ciclo virtuoso de investimento. E, na proposta apresentada pelo MME, há vários pontos de atenção [ou mesmo lacunas], o que é natural considerando tantas alterações propostas.
Mudanças institucionais sempre levam a inseguranças, pelo menos num primeiro momento. Importante é continuar dialogando as propostas com a sociedade civil e ter o despojamento de reformatá-las ao verificar a inconsistência técnica de alguma ideia, mesmo que ela funcione bem em outro setor elétrico ao redor do mundo.
A reorganização do Setor Elétrico Brasileiro, sem dúvida, será um desafio e, ao mesmo tempo, um aprendizado para todos, incluindo o segmento das fontes renováveis.
(*) Artigo publicado inicialmente no site da UDOP, parcialmente alterado para publicação neste site.
(**) Zilmar José de Souza é gerente de Bioeletricidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar – Única