A cana leva uma grande pancada
(*) Marcos Fava Neves
Nunca vi na minha carreira uma mudança de cenário tão brutal quanto a sofrida pela cana em pouco mais de 30 dias. Teríamos uma das melhores safras dos últimos 10 anos, em produção e preços, mas a chegada da guerra de preços do petróleo e o corona vírus jogaram por terra essa possibilidade. Um cenário de tragédia se instala.
Ainda fica difícil prever o que pode acontecer. O preço do petróleo caiu 65% em um mês. Com a queda drástica do consumo de etanol, parte do setor corre grave risco de ficar sem caixa para tocar as atividades, sendo que ao redor de 70% das despesas das usinas ocorrem nos seis primeiros meses da safra, de acordo com a Única.
Em relação à safra, as consultorias Datagro, FGA e SCA colocam a produção entre 596 a 605 milhões de toneladas, ligeiramente acima das 579 milhões desta safra. Segundo o Pecege, o custo de produção de cana na safra 2019/2020 foi de R$ 103,50 por tonelada. O clima ajudou a produtividade a saltar de 78 para 80 toneladas por hectare. O custo daria um valor de R$ 0,77 por quilo de ATR.
O Rabobank projeta que nesta safra brasileira que se iniciou em 1° de abril, o mix será de 45% para açúcar, quase 10% maior que na safra encerrada.
Segundo o Valor, estima-se que o RenovaBio pode movimentar mais de US$ 285 milhões nesta safra, considerando um valor de US$ 10 para cada CBio e as metas de 28,7 milhões de CBios (cada CBio equivale a evitar 1 tonelada de carbono de emissão, na substituição de combustíveis fósseis por renováveis). Em 2021, a meta aumenta para 41 milhões de CBios. Esses créditos serão comprados na B3 pelas distribuidoras e no futuro por outros agentes econômicos. Quem os vende são as usinas, via certificação de eficiência energética que foi conseguida.
A Datagro estima que as usinas do Centro Sul aumentarão para 32,5 milhões de toneladas a produção de açúcar na próxima safra, 6 milhões a mais que nesta safra. A consultoria FGA estima em 33,4 milhões de toneladas e a da SCA Trading em 32,1 milhões, com um mix para o açúcar entre 40,7% a 42,6%. Com esta situação toda, teremos uma safra bem mais açucareira, e o Brasil poderá colocar no mercado internacional entre 20 a 25 milhões de toneladas.
As exportações de açúcar da Índia, em 2019/20, devem ser 20% menores, algo próximo a 4,5 milhões de toneladas. Os atuais preços não compensam as vendas, mesmo com o subsídio dado pelo Governo de quase US$ 138/t.
Segundo o Rabobank, o déficit global de açúcar desta safra será de 6,7 milhões de toneladas, e na safra 2020/21 teremos superávit aproximado em 600 mil toneladas. A produção na Índia deve cair para 28,9 milhões de toneladas e no próximo ano voltar para 33,5 milhões de toneladas. Nesta safra a Tailândia tomba 44%, vindo para 8,6 milhões de toneladas, devendo ficar próximo disto no ano que vem. No consumo mundial de açúcar, o Rabobank aposta em estabilidade. Outras consultorias colocam o déficit no mercado mundial em cerca de 9 milhões de toneladas.
Na esteira do desastre do corona vírus, o preço do açúcar caiu quase 27% em pouco mais de 20 dias. Porém, um ponto favorável foi a venda antecipada de açúcar. Da safra 2020/21, estima-se em cerca de 65% a 80% do que será exportado já vendido a valores entre R$ 1.300 a R$ 1.400 por tonelada; algumas fixações chegaram a R$ 1.500 por tonelada. Em relação ao hedge para a safra 2021/22, estimam as principais consultorias em cerca de 20 a 30%. O valor médio destas pela Archer é de aproximadamente R$ 1440/tonelada.
Algumas empresas estimam que a crise deve impactar também o consumo do açúcar. Para a Datagro, diminui em cerca de 2,7 milhões de toneladas da estimativa anterior. A queda na FCStone é estimada em 200 mil toneladas, e da Czarnikow em 2 milhões de toneladas, deixando o consumo na safra 2019/20 ao redor de 187 milhões de toneladas. Acho ainda prematuro estimar estas perdas, pois temos que lembrar que grande parte da injeção de recursos que os governos terão que fazer irá para as populações mais carentes, o que pode estimular o uso de produtos que tenham o açúcar como componente.
O setor de etanol foi surpreendido no último dia de março com um anúncio de agentes da distribuição alegando “força maior” em contratos de compra de etanol, feitos em alertas enviados às usinas. O fato é que a enorme queda no consumo exigirá muita união, criatividade e planejamento da cadeia produtiva integrada, para que as perdas sejam minimizadas e compartilhadas. A queda enorme de vendas de combustíveis requisitará uma postura de elevado nível de todos e, comitês para discussão desse assunto, serão fundamentais. Quaisquer atitudes de integrantes da cadeia produtiva que tenham dimensão de oportunismo, face ao momento vivido, não devem ser aceitas.
As vendas do etanol hidratado em janeiro (1,9 bilhão de litros) foram 2,2% maiores que o mesmo mês do ano passado, segundo a ANP, e em 2019 cresceram 16,3%. Fevereiro ainda foi bom para as vendas de etanol.
Segundo a Única, pelas usinas do Centro Sul vendeu-se 2,403 bilhões de litros, 2,5% a menos que o mesmo mês de 2019. No acumulado da safra as vendas estão 9% maiores, pulando dos 28,43 bilhões de litros para praticamente 31 bilhões. Já na primeira quinzena de março, as vendas de etanol pelas indústrias no Centro Sul foram de 1,103 bilhão de litros, queda de quase 10%. O hidratado caiu 16% e o anidro aumentou 5%, mostrando uma troca para a gasolina.
De acordo com a ANP, o primeiro bimestre ainda fechou bem para o setor, com crescimento de vendas de 2,3%, sendo e que em fevereiro haviam sido vendidos 1,773 bilhão de litros (2,5% acima de fevereiro de 2019).
Precisamos monitorar de quanto será a queda da venda de combustíveis neste mês. Segundo a Fecombustíveis, a queda será entre 10 a 20%. Esperava bem mais. Se for apenas isto, é uma boa notícia no meio do caos que se instalou. Já o Sindicom acredita num número entre 30 a 50%. Alguns postos com quem conversei estimaram em mais de 70% a queda.
A Archer estima que a queda no consumo de combustíveis neste ano pode chegar a 3%. Segundo a S&P Global Platts, o consumo de etanol no Brasil em 2020 deve cair 2,4%.
O petróleo chegou a US$ 25 o barril, menor valor em 17 anos. O barril do Brent já caiu 50% em 2020. Segundo a consultoria INTL FCStone a Arábia Saudita tem condições de aguentar o preço do barril em US$ 10.
Com a queda dos preços do petróleo, os preços de etanol terão que cair para jogar a queda da demanda em cima da gasolina. A gasolina já caiu 40% o preço do litro este ano nas refinarias, mas o preço representa apenas 27% do total ao consumidor. Segundo a Petrobrás, os demais componentes de custos são: impostos estaduais (30%) e federais (15%), anidro (14%) e margens da distribuição (14%).
As restrições à movimentação de pessoas nos EUA afetarão também o consumo de etanol de milho nos EUA, que pode vir forte querendo exportar estoques. No caso do etanol americano, segundo a Platts o custo de produção de um galão é de US$ 0,953 e os preços atuais estão em US$ 0,99. Segundo o Pecege, os preços do hidratado nas usinas já estão ao redor de R$ 1,707 por litro no Centro-Sul, a um custo total estimado em R$ 1,781.
A Anvisa também liberou a volta do álcool 70% líquido no varejo, que estava fora do mercado desde 2002. Será vendido por 6 meses em embalagens de 1 litro, visando normalizar nesta época de explosão do consumo.
Creio que nesse momento cinco ações poderiam ser feitas:
– Linha de crédito para início da safra e estocagem de etanol, uma vez que o dinheiro sumiu.
– Aumento de 10% (adicionais) na CIDE exclusivamente na gasolina, para arrecadação de recursos visando alocação na grave crise da saúde, de 1° de maio a 31 de dezembro.
– Isenção de PIS e Cofins por um prazo de seis meses.
– Aumento na mistura de anidro na gasolina de 27,5% para 35% de 01 de maio a 31 de dezembro.
– Linha de financiamento a produtores de cana no BNDES (via sistema cooperativista).
Para concluir, os cinco principais fatos para acompanhar agora em abril na cana são:
– Acompanhar a política de isolamento e impactos no consumo de combustíveis no Brasil;
– Acompanhar os impactos do corona vírus no crescimento econômico mundial e brasileiro e nos preços do açúcar e do petróleo, principalmente;
– O clima e o andamento da safra no Brasil, com as restrições operacionais colocados pela crise do corona vírus;
– Políticas que serão oferecidas pelo governo ao setor de etanol.
– O andamento da safra de açúcar no hemisfério norte e o déficit na produção advindo das quebras. Até agora as notícias são de aumento das quebras, o que seria bom para os preços.
(*) Marcos Fava Neves é professor , em tempo parcial, das faculdades de Administração da USP, em Ribeirão Preto, e da FGV, em São Paulo, além de especialista em planejamento estratégico do agronegócio.