A regulação do setor elétrico nos tempos de pandemia
Henrique Reis e Victor Gomes (*)
Vamos poupar o leitor de uma introdução sobre a magnitude e a severidade dos impactos, em praticamente todos os segmentos dos mercados globais, da crise decorrente da pandemia internacional do novo coronavírus (Covid-19). Trata-se de fatos notórios que trazem enorme preocupação e complexidade às relações de mercado; consequentemente, demandam soluções de curto prazo nada singelas. Como o setor elétrico brasileiro não fica ileso a esse cenário, o presente artigo tem por objetivo propor uma medida de curto prazo para atenuar o impacto tarifário da crise nos próximos meses e anos, alinhando os interesses de agentes de geração e transmissão com dificuldades na implantação de obras aos dos consumidores.
No dizer da própria Aneel, “a pandemia tem causado a apreensão de agentes, governo e consumidores com os possíveis impactos econômico-financeiros, exigindo ações que garantam a solvência do setor” (Nota Técnica nº 01/2020-GMSE/Aneel). A começar pelas distribuidoras, principal entrada do fluxo de recursos setoriais, os impactos são visíveis em toda a cadeia produtiva da indústria elétrica.
Com a queda abrupta da demanda de energia elétrica, decorrente das medidas restritivas da atividade econômica adotadas pelo Poder Público, as distribuidoras são afetadas pela perda de arrecadação e pela maior inadimplência causada pela diminuição da renda dos consumidores. Essa situação pode submeter as concessionárias a problemas de fluxo de caixa, e, num cenário extremo, a dificuldades em honrar uma série de compromissos perante geradores e transmissores e relacionados a encargos setoriais.
Na tentativa de evitar que a iminente escassez de recursos contamine toda a cadeia setorial, foi editada a Medida Provisória nº 950, de 08.04.2020, que (i) assegura desconto tarifário integral a consumidores de baixa renda até determinada faixa de consumo mensal; e (ii) prevê a estruturação de operações financeiras para o enfrentamento aos impactos da pandemia no setor elétrico, para atender às distribuidoras.
Complementarmente, a Aneel, por seu recém-instituído Gabinete de Monitoramento da Situação Elétrica, emitiu a Nota Técnica nº 01, de 16.04.2020. O referido documento analisou possíveis alternativas para mitigar os impactos tarifários da pandemia, a fim de buscar novas fontes de custeio, tais como aportes do tesouro ou créditos subsidiados.
Há de se reconhecer o esforço da equipe da Aneel em tentar, em tão curto período, identificar alternativas para atenuar os efeitos nefastos da crise para o consumidor, que já há algum tempo vem observando aumentos sucessivos em sua fatura.
Não obstante, a própria complexidade e a abrangência desses efeitos inviabilizam que, em um documento apenas, sejam contemplados todos os problemas setoriais. A própria Nota ressalva que “não pretende ser exaustiva nas medidas a serem avaliadas, podendo excluir, incluir ou alterar tais medidas a depender da oportunidade e conveniência da Agência”.
Ademais, está claro que o foco, em um primeiro momento, tem sido equacionar questões financeiras de curto prazo no segmento de distribuição e evitar um contágio de outras etapas da cadeia.
De todo modo, os segmentos de geração e transmissão também têm vivenciado suas dificuldades próprias, como, por exemplo, no âmbito da implantação de novos empreendimentos. Tais dificuldades vão desde atrasos verificados na cadeia global de suprimento de máquinas e equipamentos, até paralisações de obras em decorrência das medidas restritivas adotadas pelo Poder Público para conter o novo vírus.
Nesse contexto, é bastante provável que muitos desses empreendedores não tenham condições de cumprir marcos importantes do cronograma, inclusive a data de entrada em operação comercial. Além disso, as incertezas em relação ao término da crise e à retomada da economia dificultam uma avaliação mais precisa em relação (i) à regularização das obras, e, consequentemente, quanto (ii) ao novo prazo para conclusão dos projetos.
Essa situação certamente desencadeará uma série de pleitos administrativos perante a Aneel com vistas ao reconhecimento de caso fortuito ou força maior, objetivando o afastamento das consequências regulatórias e comerciais do atraso de empreendimentos de geração do ACR e de transmissão.
Em consulta ao site da Aneel, identifica-se que há 47 usinas com previsão de entrada em operação ainda em 2020, totalizando 1.298,94 MW; 55 usinas em 2021, totalizando 2.828,58 MW; 40 usinas em 2022, totalizando 1.529,62 MW e 36 em 2023, totalizando 1.033,35 MW (dados de acréscimo de potência instalada ao SIN de empreendimentos contratados em leilões regulados da página de acompanhamento da expansão da oferta de geração). No segmento de transmissão, há 394 empreendimentos com obras em andamento, entre instalações oriundas de Leilões e reforços.
Por outro lado, como já destacado, tem-se observado uma forte retração da demanda de energia elétrica, o que resulta na redução do preço da energia no mercado de curto prazo e no aumento do montante de sobrecontratação das distribuidoras.
Além disso, é provável que a maioria das instalações de transmissão licitadas nos últimos leilões tenha sua data de necessidade real postergada devido à redução do consumo de energia elétrica em todo país. A maioria das instalações de transmissão previstas no Programa de Expansão da Transmissão (Pet) e no Plano de Expansão de Longo Prazo (Pelp) ao longo dos anos tem como justificativa o atendimento elétrico ao mercado ou das crescentes cargas das localidades próximas às instalações. A redução drástica e uniforme da carga em todo o território nacional desloca temporalmente a necessidade de diversas novas instalações de transmissão.
Essa conjunção de fatores traz sobre-custos ou custos desnecessários às distribuidoras, em boa parte repassáveis às tarifas dos consumidores. Tais condições justificam um debate acerca de um possível rebalanceamento das obrigações de entrada em operação comercial dos geradores e transmissores.
Em resumo, de um lado, os geradores e transmissores encontram dificuldades e incertezas para entrega de suas obras; de outro, os consumidores, que estão pressionados financeiramente pelos efeitos da pandemia, não necessitarão no curto prazo de tais obras em operação comercial.
Nesse sentido, seria interessante para todas as partes envolvidas (geradores, transmissores, distribuidores e usuários) a edição de um ato normativo pelo regulador que possibilite, mediante um prazo para manifestação expressa do interessado, o deslocamento, por um determinado período (p. ex. 6 meses ou 1 ano), das obrigações regulatórias e contratuais de agentes de geração e de transmissão contratados em leilões regulados. Nessa proposta, devem ser mantidos o período de suprimento dos contratos dos geradores e o período de recebimento de receita pelos transmissores, a fim de assegurar o prazo necessário à amortização dos investimentos.
O ato normativo teria por motivação uma análise de custo-benefício para o mercado regulado e para os usuários do sistema de transmissão, sob a ótica da conveniência e oportunidade da medida em face das atuais circunstâncias extraordinárias que afetam o setor elétrico. Como fundamento legal da medida, dada a notoriedade do evento e a abrangência de seus efeitos a toda a cadeia produtiva do setor elétrico, a Aneel tem competência para o reconhecimento de excludente de responsabilidade do gerador e do transmissor, na forma do art. 19 da Lei nº 13.360/2016. O referido dispositivo prevê, nesses casos, a possibilidade de recomposição da outorga e de adiamento da entrega de energia de contrato de venda em ambiente regulado.
Além de representar mais uma providência de curto prazo para mitigação do impacto tarifário e regularização do fluxo de caixa setorial nos próximos meses e anos em face dos efeitos da pandemia internacional do Covid-19, a medida pode representar economia processual para a Aneel, evitando delongadas, e muitas vezes polêmicas, discussões casuísticas sobre a configuração de caso fortuito ou força maior nos segmentos de geração e transmissão.
(*) Henrique Reis e Victor Gomes são especialistas em regulação do setor elétrico e sócios do Escritório Reis Gomes Advogados.