Reciclagem de painéis solares
André Hipólito (*)
A fonte de energia solar é conhecida por ser a mais limpa que há. A matéria-prima vem da natureza e aquece as casas, fazendas e comércios num processo totalmente sustentável, que apoia a redução das emissões de carbono, já que não emite nenhum gás poluente, contribuindo para a melhora da qualidade do ar.
Mas essa indústria está, agora, chegando cada vez mais perto de um momento crucial para mostrar que está comprometida em continuar sendo assim, ‘limpa’.
Os painéis solares têm uma vida útil média de 25 anos. E não é de hoje que o setor está atento ao que vai acontecer com esses equipamentos quando eles forem descartados e substituídos por outros novos.
Os mais alarmistas desde sempre alertaram sobre o temor de que os painéis aposentados se transformassem em montanhas de lixo eletrônico.
Esse momentum já está no dia a dia dos países da União Europeia, que começaram a transição para a energia solar no início dos anos 2000. Para impedir que montanhas de lixo se formassem, esses países já avançaram em iniciativas tecnológicas, de regulação e também de conscientização dos consumidores em prol de uma cadeia eficiente de reciclagem desses equipamentos. Só assim essa indústria vai manter seu selo de pureza ambiental.
No Brasil, a energia solar começou a ganhar fôlego a partir de 2010. Em tese, ainda faltam uns bons anos para que o momento mais drástico de volume de troca de painéis solares aconteça. Nem por isso esse é um tema fora da pauta da indústria local hoje. E, como não poderia deixar de ser, temos muito a aprender com os países que já fizeram essa transformação antes de nós e já estão desenvolvendo as melhores maneiras de lidar com essa questão.
Um relatório da International Renewable Energy Agency (Irena) sobre o gerenciamento da vida útil dos painéis solares fotovoltaicos, divulgado em 2016, estimou que a quantidade de lixo anual proveniente desses equipamentos, em 2030, alcançará entre 1,7 milhão e 8 milhões de toneladas no mundo.
Em 2050, esses resíduos podem ser da ordem de 78 milhões de toneladas. A Irena também estimou que o valor dos materiais recuperados nesses equipamentos após a reciclagem pode chegar a US$ 450 milhões em 2030, quantia suficiente para a produção de 60 milhões de painéis solares. Em 2050, o valor pode chegar a US$ 15 bilhões, suficientes para 2 bilhões de placas.
Há outros estudos que estimam 200 milhões de toneladas de painéis solares descartados globalmente em 2050. Para se ter a dimensão do que isso quer dizer, o mundo produz 400 milhões de toneladas de plástico todos os anos.
A boa notícia, por assim dizer, é que, o painel solar fotovoltaico, pela sua constituição, tem potencial reciclável muito próximo de 100% – as estimativas hoje variam de 95% a 99%.
Os painéis são compostos majoritariamente por vidro (70%) e alumínio (18%), dois materiais altamente recicláveis e com tecnologias já desenvolvidas e utilizadas em todo o mundo. Em proporções reduzidas, as placas também contêm metais valiosos, como prata, cobre, e silício, além de chumbo e estanho.
A questão que a reciclagem desses painéis ainda enfrenta é que os métodos atuais de aplicação em eletrônicos não podem ser simplesmente replicados para esses equipamentos. E a reciclagem total dos módulos ainda é muito complexa.
Os painéis solares são formados por células fotovoltaicas (PV) que convertem a luz do sol em energia. Eles são compostos por uma moldura de alumínio que abriga uma camada fina de células de silício cristalino, protegidas por folhas de polímero e de vidro. Na parte de trás, existe uma caixa com fiação de cobre para canalizar a eletricidade à medida em que ela é gerada.
E as placas contêm em seu revestimento pequenas quantidades de metais valiosos, como a prata, mas também tóxicos, como o chumbo. Isso traz um problema. Se esses equipamentos forem simplesmente depositados em aterros sanitários – além do desperdício de materiais que têm grande valor – o processo de decomposição pode representar um sério risco ambiental, contaminando os solos e a água.
No processo de reciclagem que já está mais avançado na indústria, a moldura do painel e a caixa da parte de trás são retiradas para se recuperar o alumínio e também o cobre. O resto do equipamento (vidro, polímeros e silício, revestidos por prata e soldados com chumbo e estanho) costuma ser triturado.
Como o vidro está em maior proporção nessa mistura, o resultado desse processo é considerado “vidro impuro”, ou de baixa qualidade, que não pode ser utilizado em um novo painel solar. Mas ele pode ser reaproveitado de outras formas, como na confecção de ladrilhos ou no jateamento de areia.
A grande obsessão da indústria é encontrar maneiras viáveis, inclusive economicamente, de separar os metais valiosos do vidro nessa mistura que acaba sendo triturada para que, assim, o painel possa ser totalmente reciclável.
Nesse sentido, a grande novidade neste ano veio da França e está trazendo um grande avanço tecnológico. Em junho, foi inaugurada na cidade de Grenoble a Rosi Solar – a primeira fábrica do mundo dedicada à reciclagem total de painéis solares.
Até então não existia nenhuma linha industrial capaz de recuperar adequadamente os metais e materiais encapsulados nos módulos, como o silício e a prata, separando-os adequadamente para garantir elevado grau de pureza e, consequentemente, alto valor de revenda, capazes de financiar essa atividade de reciclagem e torná-la também um negócio amplamente viável.
Além disso, a extração desses metais no processo de reciclagem também tende a diminuir o uso de energia necessária à exploração e à produção do material original, o que tende a diminuir o impacto ambiental associado à mineração.
De novo, para dar uma dimensão ao possível impacto disso: 100 toneladas de plástico reciclado evitam a extração de 1 tonelada de petróleo; e 1 tonelada de alumínio reciclado viabiliza uma economia de 95% de energia elétrica.
O processo desenvolvido pela Rosi Solar é baseado em mecanismos físicos, térmicos e de química suave – segundo a empresa, não há reação química agressiva e o custo operacional é reduzido, o que viabiliza a reciclagem na Europa. A Rosi espera extrair e reutilizar 99% dos componentes das placas.
A empresa não esconde que está de olho num mercado que tem crescimento exponencial e estima que a quantidade de painéis solares tenha um grande salto na Europa a partir de 2040, quando deve sair de 2 milhões por ano para alcançar 12 milhões em 2050.
As iniciativas tecnológicas para aprimorar o processo de reciclagem também vêm dos Estados Unidos. Fundada em 2022, a startup californiana Solar Cycle construiu um centro de reciclagem no Texas e diz que já recicla 95% do painel.
As máquinas da empresa também retiram a moldura e a caixa que contém cobre e o que sobra (vidro + metais) é separado e vendido a terceiros. Mas a companhia disse que está prestes a inaugurar uma nova planta que terá o processo químico de recuperação dos metais, principalmente prata e silício.
A China, maior produtora e exportadora de painéis solares, anunciou, em agosto passado, que planeja estabelecer padrões de reciclagem de painéis solares e turbinas eólicas até o fim da década.
Os números de painéis solares descartados anualmente podem estar em alguma medida subestimados. Esses equipamentos podem ser trocados antes da média de 25 anos hoje estimada para sua vida útil a partir do surgimento de modelos novos mais eficientes, à medida que essa indústria cada vez mais se moderniza e se transforma.
Pode ser mais barato trocar painéis solares com 10 ou 15 anos de vida por versões atualizadas. Além disso, os equipamentos não estão imunes a eventos climáticos ou até mesmo erros de instalação, que reduzem seu tempo de funcionamento adequado.
Um outro ponto que está na ordem do dia é que a indústria solar, além de aprimorar cada vez mais os seus métodos de reciclagem, precisa destinar esforços também para criar maneiras de reaproveitar ou de reparar os painéis, o que pode ter um custo menor do que o processo de reciclagem.
Atualmente, alguns vêm sendo reformados e encaminhados a países em desenvolvimento – e é preciso que as empresas reforcem o compromisso com o lixo ambiental futuramente gerado nessas localidades.
Na União Europeia, os painéis fotovoltaicos descartados são recolhidos para a reciclagem por meio de um esquema financiado por seus fabricantes e importadores. Nos Estados Unidos, esse tipo de iniciativa também existe, embora não esteja na legislação de todos os Estados. Também se vê cada vez mais o surgimento de ONGs e startups dedicadas ao assunto.
O mercado mundial vem investindo nisso até porque não fazê-lo seria um contra-senso: falar em ‘energia limpa’ e ao mesmo tempo vender algo que, no final, vai se transformar em um poluente ou gerador de resíduos indesejados.
No Brasil, que importa seus painéis, em tese, a grande leva de descartes desses equipamentos ainda não está tão próxima. Mas a energia solar já responde por 15,4% da matriz elétrica brasileira, segundo dados da Absolar, e, assim como em outros lugares do mundo, ninguém aqui está deixando para pensar no assunto quando o descarte passar a ser cada vez mais relevante e crescente.
As próprias distribuidoras ou importadoras recolhem os equipamentos e encaminham para a reciclagem e essa cultura já está se disseminando e se consolidando.
Na cidade de Valinhos, no interior de São Paulo, já funciona há três anos a primeira recicladora fotovoltaica da América Latina, a SunR Reciclagem Fotovoltaica, uma central de recebimento, triagem e unidade de beneficiamento de material fotovoltaico.
O trabalho deles já está evitando a chegada desses equipamentos a aterros sanitários do País. Em 2022, a SunR registrou crescimento de 700% no volume de material recebido, e espera nova alta este ano. Desde a sua criação, a empresa já recebeu mais de 25 mil painéis, o equivalente a 730 toneladas de material. A SunR não faz a extração química dos metais valiosos; vende os componentes para indústrias interessadas em realizar o processo.
Além de investir em infraestrutura de reciclagem, o Brasil ainda carece de regulamentação adequada para o setor – a Lei 12.305/2010, que trata da Política Nacional de Resíduos Sólidos, não trata especificamente de módulos solares. É preciso definir, por exemplo, de quem é a responsabilidade sobre os resíduos provenientes de equipamentos. O setor está mantendo conversas com o Ministério do Meio Ambiente para discutir o assunto.
Outro passo relevante consiste nas iniciativas de conscientização dos consumidores sobre o descarte dos equipamentos. Mas esse tende a ser um passo mais tranquilo, uma vez que esse é um cliente que busca economia, mas que também tem, cada vez mais, consciência ambiental.
Para que o Brasil acompanhe as melhores práticas internacionais, é fundamental investir em infraestrutura de reciclagem, promover regulamentações específicas e conscientizar, cada vez mais a indústria e os consumidores sobre a importância do descarte responsável dos painéis. Isso contribuirá para a sustentabilidade do setor e a preservação do meio ambiente.
(*) André Hipólito é fundador e diretor de Produtos e Tecnologia da Genyx.