A transição energética e os desafios da gestão da oferta de energia
Reive Barros dos Santos (*)
Muito se fala em transição energética, mas como analisar o tema em um país continental como o Brasil, sem que a transição afete a confiabilidade do Sistema Elétrico Nacional, a qualidade da energia fornecida, assegure um custo adequado ao consumidor e considere aspectos ambientais cada vez mais relevantes.
Segundo o Balanço Energético 2024, a participação das fontes renováveis na Matriz Elétrica Brasileira foi de 89,2%, correspondente à oferta em 2023, o que demonstra que, sob a ótica de transição energética, o Brasil mantém a liderança mundial, devido à política de Estado que vem sendo adotada dos últimos 20 anos. Pode-se, inclusive, afirmar que, em matéria de Matriz Elétrica, o Brasil já passaria com louvor, com “nota 9”.
O grande desafio é gerenciar adequadamente a oferta de energia, assegurando a participação de todas as fontes de geração, levando-se em conta os atributos de cada fonte no que diz respeito à confiabilidade, à qualidade de fornecimento e ao preço final da energia e, principalmente, a todos os benefícios socioeconômicos e ambientais que são proporcionados ao País.
Atualmente, a oferta de energia é muito superior à demanda, o que demonstra todo o potencial disponível e desperta, ainda mais, o apetite dos investidores devido ao ambiente favorável de negócios, mas enseja a necessidade de um planejamento que leve em conta as peculiaridades de um país continental e a disponibilidade adequada de potência por subsistema, seja através de: (i) interligações entre subsistemas, para transferir grandes blocos de potência; (ii) manutenção de projetos existentes e amortizados; (iii) implantação de novos projetos, em
locais específicos; (iv) produção e armazenamento de hidrogênio e (iv) e até, a utilização de bancos de baterias.
Ocorre que para tomar a transição energética ainda mais condizente com os compromissos assumidos pelo Brasil, existe um desafio importante: o valor da tarifa para os consumidores, com excesso de subsídios, que retira a competitividade do País.
Esse tema é objeto de preocupação do Ministério de Minas e Energia que já dispõe de um substancial diagnóstico, fruto de contribuições dos agentes do Setor Elétrico. A expectativa é que sejam apresentadas alternativas para, em conjunto com o Congresso, investidores, associações e sociedade, o Governo Federal viabilize a adoção de tarifas justas que remunerem adequadamente os investimentos e que sejam mais acessíveis para os consumidores.
Uma reflexão ampla, isenta, sem ideias pré-concebidas e que apresente uma alternativa estrutural (não conjuntural) precisa evoluir para que seja obtida uma solução equilibrada entre tarifa, investimento, qualidade de suprimento e requisitos ambientais.
É necessário entender que esses temas estão interligados e não podem ser excludentes. É imperativo multiplicar e não dividir os esforços dos diversos agentes envolvidos para a obtenção da solução mais equilibrada. Sendo assim, é de suma importância uma reflexão, com base nos seguintes pontos:
1. As fontes hidráulicas têm localização bem definida no aproveitamento ótimo, que considera a queda, a vazão e a área inundada por megawatt para maximizar a potência de geração, com preços competitivos. Geralmente, faz-se necessário um sistema de transmissão associado para o atendimento às cargas. São fontes importantes na geração de emprego e renda durante as fases de construção e operação, além de apresentar vantagens decorrentes da fabricação dos equipamentos no Brasil.Tais fontes, quando associadas aos recentes requisitos socioambientais, passaram a privilegiar as usinas a fio d’água, sem reservatórios de acumulação, o que afetou os fatores da capacidade;
2. As fontes eólicas e solares têm localização relacionadas a regiões bem específicas, sendo necessário, geralmente, um sistema de transmissão associado para o escoamento da geração. Também geram empregos, principalmente na Região Nordeste, utilizam equipamentos fabricados no Brasil e possuem um benefício ambiental inquestionável. Ocorre que a intermitência introduz uma variável importante para o controle do Sistema Elétrico Nacional. As fontes renováveis, sejam hidráulicas, eólicas e solares, são fontes de incertezas uma vez que dependem, sobremaneira, das variáveis climáticas. O planejamento, portanto, tem que lidar com as incertezas na oferta de energia e potência. O aumento das fontes intermitentes tende a mudar a variabilidade da oferta Intraday. Acrescente-se o aumento exponencial da MMGD (micro e minigeração distribuída), com previsão de 36 GW em 2030;
3. As fontes não renováveis, por outro lado, representam apenas 10% da matriz elétrica com térmicas a gás, óleo ou a carvão. São importantes para fornecer a capacidade necessária para viabilizar a crescente participação dos recursos energéticos renováveis de alta variabilidade na Matriz Elétrica, além de gerar emprego durante as etapas de construção e operação. Portanto, as fontes utilizadas são complementares e cada uma tem uma contribuição efetiva para a oferta de energia e potência.
O Sistema Elétrico precisa de flexibilidade suficiente para que a operação mantenha o controle de balanço de carga versus geração e utilize de forma otimizada a capacidade do sistema de transmissão, sem onerar o consumidor com investimentos em novas linhas de transmissão que operem, boa parte do dia, ociosas.
No modelo atual, o planejamento precisa considerar as fragilidades do Sistema e contratar as fontes que dispôem de flexibilidade de localização para serem alocadas mais próximas da carga. Dessa forma, poderá assegurar mais segurança elétrica, além de reduzir os custos de transmissão e de perdas, sem onerar o consumidor de forma desnecessária.
É fundamental considerar a realização de leilões regionais e os empreendimentos existentes já amortizados, com vistas à segurança elétrica e para assegurar a autosuficiencia elétrica das regiões. A interligação das regiões deve ser sempre considerada para intercâmbio de energia, potência e otimização de reservatorios, mas não pode ser levada a extremos, onerando o consumidor e introduzindo riscos à operação.
Atualmente, a geração concentra-se na Região Sudeste, utilizando as interligações para o intercâmbio de energia e potência com Sudeste, Norte e Nordeste. No periódo umido, o Nordeste é importador de potência e de energia e, no periódo seco, exporta energia e continua importando potência.
É, no período seco, quando o carregamento das linhas está no limite de transmissão, que podem ocorrer as fragilidades nas linhas de transmissão da interligação, devido à probabilidade de atos de vandalismo, descargas atmosféricas, queimadas, ventos fortes e intercorrências da própria operação.
Nesse contexto, a melhoria da precificação da energia por fonte deverá considerar todos os atributos e não apenas o preço como ocorre atualmente, o que distorce a realidade. Em outras palavras, nenhuma das fontes pode ser excluída, sem uma análise criteriosa de todos os quesitos que envolvem o tema.
Não há como, por exemplo, desconsiderar para o próximo Leilão de Reserva de Capacidade – LRCAP 2024, usinas que estarão descontratadas em 2027 e 2028, independente da fonte, com base em requisitos técnicos extremamente restritivos como tempo de rampa (ramp-up) e permanência (t-on).
Na sua grande maioria, tais empreendimentos, ainda não atingiram 50 % (cinquenta por cento) da vida útil e estarão, em 2027, 100% (cem por cento) amortizados, ou seja, 100% pagos pelos consumidores brasileiros que não usufruirão de 100% do benefício.
A transição energética, para ser efetivamente sustentável, não pode desconsiderar os recursos minerais e o capital humano já investidos. Descomissionar ativos que ainda podem trazer confiabilidade ao Sistema e benefício à sociedade, atrelados a um custo menor de energia, por estarem amortizados, é um equívoco.
Uma verdadeira transição não pode olhar somente para o futuro, precisa evitar desperdícios com os recursos já empenhados pelo cidadão brasileiro.
Cabe ao Ministério de Minas e Energia, como definidor das politicas públicas para o setor de energia, e à Empresa de Pesquisas Energéticas levar em conta na elaboração do Plano Decenal da Expansão de Energia – PDE, a continuidade do processo de transição energética e, principalmente, incentivar a utilização de todas as fontes, sem exceção, de modo a criar emprego e renda no País, na fabricação de equipamentos e na engenharia de construção e operação, buscando, sempre, o melhor benefício para o consumidor, mas sem desconsiderar os investimentos já incorridos pelo cidadão, a modicidade tarifária, a qualidade de suprimento e os requisitos ambientais.
(*) Reive Barros dos Santos é diretor da Acrópolis Energia