Decisão da CCEE agita Abraceel
Maurício Corrêa, de Brasília —
Os finais de ano no mercado livre de energia elétrica do Brasil, normalmente, são calmos como um lago. Tudo fica parado, sem movimento. Tanto que quase todo mundo tira um período de férias que vai desde a véspera do Natal até após o Ano Novo. Este ano está sendo diferente, pois uma guerra de bastidores envolve grande parte das empresas vinculadas à Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia. O ambiente está quente na Abraceel.
A senha para a confusão foi dada sem querer pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), ao definir na ata de reunião do seu Conselho de Administração realizada em 15 de dezembro, que sete comercializadores operaram “em desacordo com a legislação vigente”. Dos sete, cinco fazem parte da Abraceel, sendo que duas se colocam entre as maiores do mercado: BTG Pactual e Comerc.
A associação dos comercializadores tem um peculiar (e democrático) sistema de governança, através do qual os conselheiros são eleitos diretamente pelos próprios associados. É um mecanismo sem paralelo no conservador sistema elétrico brasileiro, onde impera o arcaico sistema de conchavos das políticas internas.
A decisão tomada pela CCEE impactou diretamente a Abraceel pois diretores da BTG Pactual Comercializadora e da Comerc ocupam posições de destaque no Conselho de Administração da associação.
Na eleição realizada em março de 2015, para mandatos que têm validade até março de 2017, Oderval Duarte, da BTG Comercializadora, foi reeleito para a Presidência do Conselho, com 80% dos votos (no primeiro mandato, a sua votação já havia sido expressiva). Cristopher Vlavianos, diretor da Comerc, foi o segundo mais votado.
Agora, a decisão da CCEE motivou uma crise dentro da associação, pois vários associados entendem que já passou da hora de o Conselho se manifestar em relação às operações feitas “em desacordo com a legislação vigente”. Outro grupo acredita que não se pode condenar ninguém até que a Aneel tome a sua decisão e ainda existem aqueles, mais zen, para os quais tudo não passa de uma tempestade em copo d´água e que os associados mais entusiasmados poderiam aproveitar a época do ano e relaxar um pouco mais, pois não existiria um motivo efetivo para tanto zum-zum-zum.
De forma aberta, ninguém toca no assunto dentro da associação. Mas em conversas reservadas, a intriga corre solta. Um observador, que não faz parte da associação, lembrou a este site que a BTG Pactual Comercializadora já havia sido alvo de muita conversa, desde que o banqueiro André Esteves foi preso pela Polícia Federal.
Enquanto ele esteve na cadeia, rolou muita história sobre a eventual/possível/imediata venda da comercializadora, até porque o banco teve alguns momentos iniciais de pânico devido à corrida ao seu caixa, situação que foi aparentemente contornada desde que Esteves deixou voluntariamente o comando do banco e, em seguida, saiu da penitenciária e foi colocado em prisão domiciliar.
O mesmo analista lembrou ainda que os comentários sobre a venda da comercializadora sem dúvida fragilizaram a posição de Oderval Duarte como presidente do Conselho de Administração da Abraceel. Até porque, se a venda tivesse ocorrido e ele não permanecesse como dirigente da comercializadora, teria, por força de Estatuto Social, que renunciar à presidência do Conselho da associação.
Passado o momento da quase venda da BTG Comercializadora, que até agora não se realizou, a posição de Oderval Duarte como líder da associação é novamente contestada, desta vez usando-se a decisão da CCEE como pretexto.
Procurado por este site, Oderval não quis fazer comentários nem sobre o problema interno da Abraceel e nem sobre a operação apontada pela CCEE. Entretanto, um outro conselheiro da Abraceel afirmou que ele está muito tranquilo. Considera absurda a versão apresentada pela CCEE, pois não teria inventado qualquer lastro.
Quanto à agitação dentro da Abraceel, também está tranquilo, embora considere de certa forma desleal atacar a BTG Pactual Comercializadora e a sua própria posição pessoal em um momento que o banco atravessa uma fragilidade. “Alguém está tentando forçar a barra para virar a mesa dentro da Abraceel e mudar o comando da associação, desconhecendo que o Oderval teve 80% dos votos na última eleição”, afirmou a mesma fonte.
A questão levantada pela CCEE envolve uma certa polêmica. Vários agentes do mercado indicaram a este site, inclusive, que o programa computacional utilizado pela Câmara tem fragilidades, que permitiriam esse tipo de operação agora contestado pela CCEE. No meio da tarde do dia 28 de dezembro, este site solicitou formalmente à CCEE, através da Assessoria de Imprensa, que confirmasse a existência ou não de brechas no programa computacional.
Mas, meia-hora depois, uma fonte graduada da CCEE ligou para o autor desta matéria e confirmou, em off, que realmente foram encontradas falhas no programa computacional, as quais, inclusive, já tinham sido corrigidas.
Às 19 horas, a Assessoria de Imprensa enviou uma pequena nota ao site, que não esclarecia muita coisa, mas estranhamente dizia o seguinte: “A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE esclarece que a comercialização de energia incentivada é regulamentada por legislação, regras e procedimentos de comercialização vigentes. Essas diretrizes são consolidadas em um sistema computacional desenvolvido para operacionalizar as contabilizações. Em eventuais situações de divergência entre a regulamentação e o sistema computacional, este deve ser aprimorado”.
Um conselheiro da CCEE contou que a área de monitoramento da Câmara (que investiga os procedimentos dos agentes a ela vinculados, para saber se eles estão operando dentro das regras fixadas) ficou sabendo por acaso do que estava acontecendo.
A mesma fonte explicou que, na reunião do Conselho de Administração realizada em 24 de novembro, foi apreciada uma solicitação de duas comercializadoras (Diferencial e Terra Energy) para recontabilizar uma determinada operação. Ao revisar o que tinha ocorrido nessa operação, o monitoramento descobriu aquilo que no jargão técnico da CCEE é classificado como um “incremento de energia incentivada sem a respectiva identificação de origem em geradores de fonte incentivada”. Em português, pode-se traduzir para “foi fabricado lastro artificialmente”.
Nessa reunião, os conselheiros da CCEE decidiriam então pedir à área de monitoramento que investigasse se havia mais alguém procedendo da mesma forma. Foram encontradas mais seis comercializadoras. Além da BTG Pactual e da Comerc, a Clime Trading, a FC One, a Nova Energia e a Prime Energy. Apenas a FC One e a Prime não integram a Abraceel.
Dos dirigentes dessas empresas, apenas a Comerc se posicionou a pedido deste site. Os da Diferencial, Clime, FC One, Nova e Prime não foram encontrados. Oderval, da BTG Pactual, não quis falar sobre o assunto e disse que se manifestará apenas em janeiro.
No dia 22 de dezembro, dirigentes das comercializadoras Comerc, Clime, Nova e FC One foram ouvidos pela CCEE. No dia 04 de janeiro próximo, comparecerão os responsáveis pelas empresas BTG Pactual, Diferencial e Prime Energy.
Uma fonte que acompanha a questão de perto disse que a CCEE não tem dúvidas que houve irregularidades. Depois de recolhidos os depoimentos dos agentes envolvidos, a Câmara fará um relatório e encaminhará para a Aneel. Na CCEE, o limite de penalidade que pode ocorrer é a eventual recontabilização das operações identificadas. Quanto ao que a Aneel poderá fazer, não se pode adivinhar.
POSIÇÃO DA COMERC
A Comerc encaminhou ao site a seguinte nota de esclarecimento:
“A Comerc Power Trading Ltda. foi mencionada no Sumário da 843ª Reunião Extraordinária do Conselho de Administração da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), referente à reunião realizada no dia 15/12/15, acerca de supostas operações de incremento de lastro de energia incentivada comercializada no mercado livre. Sobre a afirmação do Sumário de que haveria ocorrido “incremento da energia incentivada sem a respectiva identificação de origem em geradores de fonte incentivada, em desacordo com a legislação vigente”, esclarecemos que as operações realizadas pela Comerc Power Trading Ltda. estão integralmente de acordo com as regras vigentes. As operações respeitaram a flexibilidade da matriz de desconto da energia incentivada, sem qualquer tipo de incremento de lastro e com lastro comprovado em fontes incentivadas, tendo sido homologadas normalmente pela CCEE, em linha com as devidas contabilizações da Câmara.
Esta modalidade de contrato utiliza a combinação de energia proveniente de diferentes geradores de fontes incentivadas, cada uma com seu respectivo percentual de desconto nas tarifas de transmissão (TUST) e distribuição (TUSD). Nas operações realizadas pela Comerc Power Trading Ltda. mencionadas no Sumário, foi feita a combinação de dois contratos de energia incentivada com 50% de desconto nas tarifas de uso, que originaram um único contrato com energia com 100% de desconto nas tarifas, porém com montante reduzido pela metade. Toda energia utilizada foi integralmente lastreada em fontes incentivadas, em concordância com as Regras de Comercialização.
A operação beneficiou o consumidor, que obteve desconto resultante da composição do mix de fontes incentivadas originárias dos diferentes geradores, em um procedimento totalmente aderente às regras de mercado. O formato é extremamente positivo para os consumidores livres, que podem acessar fontes incentivadas com desconto nas tarifas de uso, e também é benéfico para os geradores, visto que favorece a liquidez do mercado. Vale ressaltar, ainda, que esse formato de contratação de energia incentivada é rotineiramente utilizado no mercado de comercialização e homologado pela CCEE normalmente, como ocorreu com essa operação da Comerc Power Trading Ltda.
O presidente da Comerc Energia, Cristopher Vlavianos, esteve reunido com membros do Conselho da CCEE no dia 22/12/15 em busca de elucidar e propor soluções para o caso em questão, em defesa da transparência e eficiência do mercado livre. A proposta apresentada por Vlavianos é a realização de estudos com o objetivo de analisar o real impacto e se há algum tipo de prejuízo decorrente deste formato de contratação de energia incentivada. Desta forma, os estudos poderiam avaliar o formato atual ou possíveis melhorias, se realmente necessárias. A proposta está em análise pela Câmara. A Comerc Energia direciona esforços constantemente à excelência do mercado livre, primando pela abertura deste segmento com liquidez e eficiência de custos para o consumidor”.