Agentes se preocupam com mudanças nas garantias do MCP
Maurício Corrêa, de Brasília —
O mercado de curto prazo de energia elétrica (MCP) está mais uma vez vivendo dias de conflito. No início deste mês, segundo os dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), do valor efetivamente contabilizado, R$ 3,9 bilhões não foram pagos pelos agentes, configurando uma inadimplência total de 78%. Nesse percentual, porém, estão as dezenas de liminares que inundam a área jurídica da própria Câmara, que somam R$ 3,7 bilhões. Um valor bem menor, de quase R$ 200 milhões (3,77%) corresponde à inadimplência real do MCP. Diante dos números, a CCEE entende que deva ser buscada a inadimplência zero e quer apertar os mecanismos de aporte de garantias financeiras. Na visão de alguns agentes, é uma situação que não precisava existir.
Há duas semanas, a CCEE convidou os agentes para participar de um workshop, em São Paulo, cujo tema era “Garantias financeiras no mercado”. Este site conversou com alguns participantes e a percepção de modo geral foi negativa e preocupante.
Mesmo reconhecendo a importância da iniciativa — pois entende-se que a Câmara quer proteger o mercado da fraude e daqueles que eventualmente agem apenas movidos pela má-fé — os agentes entendem que a Câmara está fazendo um esforço operacional enorme para matar uma mosca que não transmite o aedes aegypti. Ao mesmo tempo, obriga os agentes a custos elevados, em um momento muito difícil da economia.
Essa história não tem fim e tornou-se recorrente no mercado de energia elétrica. Antes prevalecia um mecanismo de garantia bastante primário, que era sem dúvida ineficaz e praticamente incentivava à prática de irregularidades. Em 2012, a CCEE acordou para a falta de realidade das garantias financeiras e tentou modificar as regras do jogo.
Em dezembro de 2013, a Câmara firmou acordos com seis instituições financeiras (Bradesco, BTG Pactual, Deutsche Bank, Itaú, Safra e Santander), que passariam a abrir espaço para que os agentes contratassem limites operacionais. Ou seja, a partir daí, cada agente poderia operar até o próprio limite acertado com o banco. Por desinteresse dos próprios bancos, a ideia do limite operacional não funcionou, até que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) finalmente decidiu suspender a exigência do L.O., em agosto de 2015.
Desde então, o mercado vem praticando no relacionamento com a CCEE as formas habituais de garantia financeira avulsa: dinheiro, CDB´s, títulos e carta de fiança bancária. No workshop de São Paulo, entretanto, os agentes se surpreenderam com a proposta da CCEE de ressuscitar o limite operacional.
Tanto do ponto de vista da Aneel, quanto da CCEE, os agentes desejam a liberdade de arbitrar as suas garantias no mínimo possível, o que dificultaria assumir os riscos inerentes às complexas operações do mercado de curto prazo. Por outro lado, sob o ângulo dos agentes, há o receio que se a exigência de garantia for muito forte, isso acabará beneficiando os grandes do mercado (e os bancos), afastando os pequenos.
Existem uma quase unanimidade entre os agentes que participaram do workshop de 03 de março, em São Paulo, e que foram ouvidos por este site. O problema atual do MCP não seria exatamente a taxa de inadimplência, que está relativamente sob controle, mas, sim, o excesso de medidas liminares judiciais, pois as empresas, diante de várias decisões que foram tomadas pelas autoridades, não tiveram outro recurso a não ser recorrer à proteção judicial.
De fato, a judicialização extrema não interessa ao mercado, mas tem um momento em que não há mais alternativas. Um agente lembrou com certa ironia que as liminares ainda não podem ser solucionadas com a mudança das regras da CCEE, ou seja, existem questões mais prioritárias com as quais a Câmara deveria se preocupar.
A mesma fonte lembrou que já existem outros mecanismos para gestão da taxa de inadimplência, como as regras da própria CCEE para se desligar agentes. Além disso, quando não são aportadas garantias, o registro do contrato não é efetivado pela CCEE. Como se isso não fosse suficiente, existe o trabalho de monitoramento da Câmara. Tudo isso, na visão do mesmo agente, tem contribuído para tornar eficiente o controle das fraudes e a redução da inadimplência no âmbito do MCP.
A última proposta da Aneel sobre o assunto, consubstanciada através de uma nota técnica de final de junho de 2015, jogou gasolina na fogueira, pois entendeu que era necessário envolver todos os agentes existentes na cadeia de um determinado contrato. A CCEE se posicionou contra.
Mas não foi apenas a CCEE, pois essa proposta seguramente gera insegurança jurídica no mercado, embora a Procuradoria Geral da Aneel não tenha visto nada demais sob o ponto de vista rigorosamente jurídico. Na opinião dos agentes, essa proposta não é boa, pois estende o risco às relações bilaterais das contrapartes dos contratos, o que é absoluta falta de senso sob o ponto de vista prático. Sem dúvida, isso elevaria o risco da contratação.
Acendeu a luz amarela, nesse ambiente totalmente fluido e que se prepara para receber centenas de novos consumidores, que estão migrando do mercado cativo para o mercado livre na busca de menores gastos com a conta de luz.
Felipe Barroso, diretor da comercializadora BioEnergias, de São Paulo, acredita que a estrutura de garantias tem sido tratada por “pessoas completamente despreparadas, que criaram uma colcha de retalhos sem qualquer avaliação clara de sua efetividade. O grande problema da inadimplência, nos últimos dois anos, é causado pelas liminares oriundas da falta de regulação clara do setor elétrico e de intervenções políticas no mercado, como a famosa canetada da MP 579”, declarou a este site.
Para Barroso, a CCEE está buscando a inadimplência zero a qualquer custo, “mesmo que isso comprometa a competitividade das empresas em prol da segurança extrema. É importante observar que nem o ONS utiliza a metodologia de garantir 100% do atendimento da carga. A CCEE quer viver num mundo ideal, que não existe”, acrescentou. Para Barroso, “o próprio mercado já se reorganizou. O fato de ocorrer o não registro de contratos devido ao não aporte de garantia, isso já atende completamente a questão da inadimplência causada pelo risco de crédito. Qualquer alteração nessa metodologia será inócua e custosa. Isso tudo é fumaça para mostrar trabalho”, frisou.
Há muito tempo, Barroso defende a ideia de criação de um fundo garantidor, que surgiria com a finalidade de garantir riscos sistêmicos. “Desde que formulei a ideia pela primeira vez e se cada operação registrada na CCEE cobrasse apenas R$ 0,05 por MW/hora, já teríamos hoje um fundo de aproximadamente R$ 2 bilhões”, complementou.
Para a CCEE, não basta ter inadimplência baixa. Afinal, em maio de 2015, a taxa real (já descontadas as liminares judiciais) era de apenas 0,34% e subiu 10 vezes desde então. Para a Câmara, é fundamental dotar o mercado de curto prazo de um mecanismo que contemple todos os riscos envolvidos. Não apenas aqueles relacionados com o crédito, mas, também, o risco de liquidez, o de mercado, o de fraude, o operacional e até mesmo os impactos dos riscos legais.
Nesse contexto, no workshop de São Paulo a CCEE levantou a questão do fundo garantidor citado por Felipe Barroso. Esse fundo, segundo a Câmara, seria integralizado não só pelas contribuições dos agentes, mas, também, pelas penalidades aplicadas pela Câmara e pelo rendimento de suas aplicações. Desde 2008, a soma das penalidades impostas ao mercado alcançou a cifra espetacular de R$ 405,4 milhões.
O diretor técnico da Deal Comercializadora, Antônio Miguel Botta, entende que a implementação de um limite operacional mínimo é válido e poderia funcionar como uma espécie de cheque especial, transformando-se em uma ferramenta para evitar pequenas inadimplências, provocadas, por exemplo, por esquecimento da data de aporte. Na sua visão, esse é o tipo de situação que poderá ocorrer bastante, nos próximos meses, com a adesão maciça de novos agentes consumidores, que não dispõem, ainda, de pleno conhecimento sobre as regras do MCP e o cumprimento dos prazos.
Botta também acredita que a ideia de se ter uma aplicação financeira lastreando um contrato de comercialização de energia elétrica, vinculada e operada pela CCEE, também é bem vista. Inclusive ele acredita que isso poderá trazer de volta ao MCP as instituições financeiras que declinaram de operar com o limite operacional.
Na sua visão, entretanto, não são aplicáveis as propostas de análise financeira por bureau, a segregação na contabilização de inadimplências anteriores e a cobrança profissional através de empresas de recuperação de crédito. Para o diretor da Deal, essas propostas aumentam os custos para os agentes e não têm muita aderência à vida prática.
Para um outro agente, de fato, hoje, embora seja meio difícil definir com exatidão o tamanho da inadimplência no âmbito da CCEE, devido ao impacto das muitas liminares judiciais, a CCEE visivelmente quer melhorar as regras das garantias financeiras.
Para a mesma fonte, é positivo, para a CCEE, querer associar a regra de garantia financeira aos riscos de crédito, de liquidez, de fraude, legais e operacionais. “O que não é oportuno é o momento. Estamos atravessando um momento de muita judicialização e volatilidade. Talvez seja mais interessante explorar as mesmas ideias em um contexto no qual o mercado esteja vivendo dias melhores”. A CCEE fixou o prazo até o próximo dia 31 para que os agentes encaminhem propostas com contribuições sobre o tema.