Sem ter para quem vender energia, sobrecontratação leva distribuidoras à lona
Maurício Corrêa, de Brasília —
Superprotegidas pelo Ministério de Minas e Energia, que sempre viu nelas o caixa do sistema elétrico, ou seja, é por onde entram os bilhões de reais dos consumidores que abastecem toda a cadeia produtiva do setor elétrico brasileiro, as concessionárias de distribuição estão em uma espécie de “mato sem cachorro” e, neste momento de crise institucional, em que os próprios padrinhos podem perder o emprego, têm um problema gigantesco pela frente: a sobrecontratação. Hoje, estariam sobrando nas prateleiras das distribuidoras, devido à redução do mercado, 6 mil MW médios de energia. Não é pouca coisa.
Este site teve acesso à apresentação feita por Nelson Leite, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), na última reunião do Fórum das Associações Empresariais do Setor Elétrico (Fase), realizada em Brasília no dia 26 de abril. Nesse ambiente reservado apenas aos dirigentes da associações, sem público externo, e aonde são ditas as verdades absolutas que atingem o setor elétrico, Leite — um mineiro calmo, afável e super-habilidoso para fazer, nos bastidores, a “costura” das decisões que interessam às distribuidoras, abriu o jogo: a sobrecontratação de energia sistêmica do segmento é explosiva e 80% das distribuidoras estão expostas ao risco de preço do mercado de curto prazo — onde impera o chamado PLD — Preço de Liquidação de Diferenças — “com elevada chances de perda de valor”.
Sob o ponto de vista das distribuidoras, é muito fácil encontrar as razões da sobrecontratação de energia no momento atual: a primeira delas é a própria crise, que fechou centenas de fábricas ou as obrigou a reduzir substancialmente o valor da conta de luz, devido ao encurtamento dos seus mercados. O segundo motivo é um velho fantasma da distribuição, que enxerga na migração de consumidores industriais para o mercado livre outra fonte de alimentação da sobrecontratação. Na medida em que consumidores de grande porte passaram a comprar energia elétrica por melhor preço de outros fornecedores, as distribuidoras ficam com o mico na mão, sem saber onde colocar aquela energia já adquirida.
O site “Paranoá Energia” apurou que o presidente da Abradee deixou muito claro para os seus colegas do Fase que a situação atual é horrorosa e que não tem a menor chance de ser resolvida nos próximos anos. Para este ano, na média, as distribuidoras estão contratadas em 113,3%. A divisão pelas regiões do País é a seguinte: 113% no Sul, 109% no Sudeste, 110% no Nordeste, 115% no Centro-Oeste e 118% no Norte. Quando se projeta a sobrecontratação para o país como um todo, em 2017 deverá alcançar 115,4%; em 2018, 114,9%; em 2019, 115,8%; A partir de 2020, a situação começaria a melhorar um pouco, com a média voltando para 113,6% e, no ano seguinte, para 109,4%.
Quando se observa os limites mínimos e máximos dessa contratação de energia elétrica das distribuidoras, salta aos olhos o tamanho do problema. Para 2016, o fosso não é tão grande e fica entre 103% da concessionária com menos dificuldade e 122% para a mais sobrecontratada. Entretanto, quando se olha para 2019, a boca do jacaré fica maior ainda e a diferença é calculada entre 97% e 138%. E, quando chega em 2021, a diferença foi estimada entre 82% e 128%. Um especialista ouvido por este site comentou que “claramente, pode-se observar que há distribuidoras que souberam comprar e outras, não. A crise tem um peso indiscutível, mas não é a única fonte de problema. Os números mostram que a sobrecontratação não pode ser apenas atribuída à crise ou à migração de consumidores para o mercado livre”.
Qualquer que seja a razão, não há dúvidas que as distribuidoras estão com um senhor problema para administrar e que os executivos da Abradee estão fazendo o possível para tentar resolvê-lo. Contudo, uma outra fonte lembrou a este site que, desde que o PT assumiu o poder, em 2003, as distribuidoras sempre tiveram o amparo total do Ministério de Minas e Energia, para resolver as suas dificuldades, pois esta é a forma como o ideólogo petista do setor elétrico, professor Maurício Tolmasquim, presidente da EPE, enxerga as distribuidoras. O seu raciocínio, que não é totalmente equivocado, é simplista: os consumidores pagam as contas de luz nas distribuidoras, que distribuem os recursos através do restante do sistema elétrico. Então, no canal por onde entra o dinheiro, não pode existir crise. Tem sido assim há mais de 10 anos.
Essa superproteção do Governo às distribuidoras acabou gerando algumas situações jamais imagináveis no setor elétrico há alguns anos atrás. Nesse contexto, o ano de 2014 foi emblemático nas relações entre as distribuidoras e o MME. Quando houve a explosão dos preços da energia elétrica gerada pelas térmicas, em consequência do esvaziamento dos reservatórios, o Governo montou um complexo esquema de salvamento das distribuidoras, através do qual a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que foi criada para liquidar contratos de compra e venda, virou uma espécie de banco estatal, repassando recursos que foram emprestados por várias instituições financeiras. Eram os tempos mais brilhantes das soluções mágicas da contabilidade criativa engendrada pelo Tesouro Nacional, que, por sinal, estão em vias de derrubar uma presidente da República.
Em 2014, o envolvimento entre as distribuidoras e o Governo era intenso, mas quem dava as cartas era o MME. Aí, houve uma eleição para o Conselho de Administração da CCEE e o governo queria indicar a advogada Solange David (que, aliás, é uma profissional bastante competente e séria, tendo sido reconduzida na semana passada), responsável pela área jurídica da Câmara durante vários anos, para ocupar uma cadeira no Conselho. Contudo, ela precisava ser indicada por uma categoria (na CCEE, os agentes são representados pelas categorias consumo, geração, pelo conjunto dos agentes e pela distribuição). Qual foi mesmo a categoria que se prontificou a indicar Solange para o Conselho? A distribuição, é lógico. Até hoje, tem gente graúda dentro do sistema das distribuidoras que não absorveu bem essa iniciativa, mesmo ressalvando as qualidades pessoais da advogada Solange David.
Mas, agora, houve uma convergência extraordinária entre a crise das distribuidoras (que também estão com a Aneel nos seus calcanhares, sempre atenta nos pedidos de aumento de tarifas), a crise política que jogou o governo na lona e a crise econômica que afundou o país. Na semana passada, no Fase, Nelson Leite lembrou que a queda sistêmica da economia “não pode ser rotulada como risco ordinário da distribuidora”. Ou seja: jogou a bola para o Governo. Nas contas da Abradee, as previsões para a economia já estavam já estavam indo para o brejo, mas o o planejamento do setor elétrico ainda projetava um crescimento consistente da carga para 2021, da ordem de 4,2%. Na visão da associação dos distribuidores, “o mercado cativo do Brasil afundou sistematicamente”.