Fmase quer revisão das normas legais ambientais
Maurício Corrêa, de Brasília —
Presidente do Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico (Fmase), recentemente empossado, Enio Fonseca — atual superintendente de Gestão Ambiental da Cemig — tem muito trabalho pela frente. Mas não lhe faltam entusiasmo, disciplina e dedicação. Nesta entrevista exclusiva concedida ao site “Paranoá Energia”, ele fala sobre várias questões que afetam os projetos de energia elétrica no Brasil sob o ângulo ambiental. Na sua visão, é preciso rever o arcabouço legal ambiental voltado para o setor elétrico. Também considera fundamental coibir o furor tributário de vários estados, que têm instituído taxas ambientais, algumas ilegais, na sua avaliação.
Nesta entrevista, Enio Fonseca não fugiu dos assuntos, mesmo aqueles considerados polêmicos. Aqui ele fala sobre a construção de usinas com reservatórios de acumulação, segurança das barragens, criminalização de funcionários públicos que atuam na área ambiental, diálogo entre os empreendedores e os organismos ambientais e sobre os direitos de populações indígenas eventualmente afetadas pela construção de barragens. Eis a íntegra da entrevista:
1. Tendo assumido recentemente a presidência do Fmase, qual o balanço que o Sr. faz a respeito do licenciamento ambiental voltado para empreendimentos do setor elétrico no Brasil?
Resposta: Inicialmente é preciso pontuar que o Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico congrega nada menos que 20 associações, sendo reconhecido como o interlocutor setorial para as questões ambientais, mantendo permanente diálogo com todas as esferas do poder e também com a sociedade civil. Durante as discussões do novo Código Florestal, o relator deputado Aldo Rebelo destacou a existência de nada menos que 16 mil normas legais que tratam da questão ambiental no País. De lá para cá, o furor legislativo, em todas as instâncias, tem produzido mais e mais regras ambientais. Num contexto dessa dimensão, fica clara a complexidade para os empresários e demais atores entenderem e cumprirem todas as obrigações, muitas delas excludentes ou contraditórias. Não bastassem a regras, também os poderes legislativos, judiciário e entidades da sociedade civil tem atuação crescente sobre o tema. O poder público regulatório e o ambiental não conseguiram ainda a harmonia perfeita nos prazos concedidos, o que acarreta atrasos consideráveis, com prejuízos econômicos, sociais e também ambientais para toda a sociedade. A revisão do arcabouço legal ambiental, iniciativa que está sempre em pauta, porém gerando mais regras, é a solução que todo o setor elétrico, e tenho certeza, toda a sociedade quer.
2. Como o Sr. avalia o furor tributário que tem sido adotado por alguns estados, que têm ampliado o número de taxas, principalmente de fundo ambiental, que incidem sobre projetos do setor elétrico?
Resposta: O setor elétrico sempre foi considerado um modelo de planejamento e operação. Esse comportamento de gestão, considerado referência mundial, teve como consequência sua consolidação como uma referência para o país. Isso significou também uma estruturação robusta em todos os sentidos, inclusive em seus resultados econômicos e financeiros. Por isso, ao longo de décadas de operação, são muitos os exemplos de taxas, impostos e outras cobranças de toda ordem, que recaem sobre o setor. No entanto, após a Medida Provisória 579 e efeitos adversos sobre o nosso clima gerando a crise hídrica, temos hoje parte significativa do setor com receitas diminuídas, trazendo resultados financeiros negativos, ao mesmo tempo em que a situação econômica desfavorável afeta também os resultados dos poderes executivos federal, estadual e municipal. Isso tem motivado muitas iniciativas de legislação ambiental arrecadatória, com validade muitas vezes regional. Em nosso entendimento, muitas delas pecam por ilegalidade, criando diferenciais competitivos que acabam impactando os consumidores regionais. O Fmase tem estado atento a esse furor tributário e procurado negociações que revertam essas normas e impeçam o aparecimento de outras.
3. Uma das questões que mais afetam os projetos do setor elétrico, na área ambiental, é a utilização do licenciamento como motivo para que os empreendedores viabilizem financeiramente políticas públicas que, na realidade, são responsabilidade do Estado. Como se pode contornar essa situação, considerando o atual contexto político?
Resposta: O espírito da legislação ambiental tem como premissa a clareza do entendimento da viabilidade ambiental de um empreendimento que cause impacto ambiental, aí observada sua matriz de impactos e respectivas medidas mitigadoras ou compensatórias. Apenas sobre impactos vinculados deveriam existir ações de responsabilidade do empreendedor. E todo esse aspecto deveria ser estudado e ter as contrapartidas previstas na fase de emissão da licença prévia. No entanto, sabemos que cerca de 70% de todas as condicionantes aparecem nas fase subsequentes, da Licença de Instalação e Operação, já como custo do empreendedor. Parece-nos injusta essa equação, e ela gera conflitos sociais e de ordem financeira. O correto seria existir um programa de desenvolvimento de governo, associado a cada empreendimento público licitado.
4. Qual a visão do Sr. a respeito da construção de hidrelétricas com reservatórios de acumulação de água? Não podemos obviamente repetir projetos como a usina de Balbina, mas seria possível fazer com que fossem novamente construídas hidrelétricas com reservatórios plurianuais?
Resposta: A reservação de água é um processo conhecido desde a antiguidade. Guardar água em períodos de fartura, para usar em períodos de escassez, garantiu que inúmeras civilizações pudessem se manter ao longo do tempo. Desde que se consolidou a ideia de que reservatórios a fio d’água tem menor impacto ambiental, o país já perdeu significativa capacidade de manter suas hidrelétricas funcionando por dois ou três períodos secos. Hoje, se temos um ano ruim, em termos hidrológicos, sentimos imediatamente a falta dos reservatórios, com a necessidade da entrada das termelétricas na geração, com consequente aumento de tarifas e seus impactos econômicos, sociais e ambientais para toda a sociedade. O problema não é ter um grande reservatório. Isso poderia ser a solução da questão energética. A questão é a correta mitigação ambiental decorrente do tamanho dessa infraestrutura. É importante lembrar que a hidreletricidade, junto com eólicas, solares e biomassa faz parte da matriz energética sustentável.
5. Como o Fmase vê o trabalho que a Aneel vem desenvolvendo desde dezembro passado, quando adotou uma nova resolução destinada à segurança das barragens? Na sua visão, o setor elétrico está preparado para evitar um desastre como o ocorrido na barragem de rejeitos minerais de Mariana?
Resposta: O episódio ocorrido em Mariana acendeu a luz amarela entre muitos empreendedores de barramentos, sejam eles minerários, de abastecimento de água ou de geração de energia. Temos de ter em mente que tudo começa com a melhor prática da engenharia, com estudos adequados, bons projetos, mão-de-obra qualificada e licitações responsáveis. Bem construído o barramento, sua manutenção deve seguir os mesmos princípios, com monitoramento constante de riscos, e sempre a melhor engenharia à disposição. É inadmissível negligenciar esses procedimentos. Boas regras, como essa nova resolução da Aneel, são bem vindas e se somam a outras existentes. Sem regras não há como disciplinar procedimentos e informações e nem fazer as cobranças devidas. Segurança é fator fundamental para uma concessionária, e nada, especialmente restrições orçamentarias, deveria impedir a existência de áreas internas e procedimentos que garantam a estabilidade dessas estruturas. Nesse momento, cada empresa deve estar reavaliando seus valores, práticas e procedimentos que tratam do tema segurança de barragens.
6. A Compensação Financeira para Uso dos Recursos Hídricos (CFurRH) não é vinculada a ações específicas. Para um benefício concreto das comunidades atingidas, o Sr. não considera fundamental que a CFurRH tenha aplicação específica, para se evitar o desperdício dos recursos?
Resposta: Esse é um ponto interessante. Temos a tradição de pensar que tudo, tudo mesmo tem de ser regulamentado em detalhes. Numa sociedade democrática, cada poder beneficiário da parcela do CFurRH não poderia escolher em que atividade deveria investir sua cota parte? Se a escolha for pela educação estaria errado?
Seria isso desperdício? Penso que não. Mas não descarto a tese de que orientar os gastos desse recursos, em todos os níveis beneficiários, para atividades com foco ambiental, seja uma boa iniciativa.
7. Em muitos casos, os processos de licenciamento ambiental se arrastam nas repartições públicas, pois muitos técnicos têm receio de serem responsabilizados por eventuais autorizações contidas nesses processos. Isso acaba estendendo demasiadamente os prazos para desenvolvimento dos projetos. O que precisaria mudar nesse sentido?
Resposta: A análise técnica deveria ser valorizada e independente, no exercício da função. Hoje, o parecer do técnico ambiental pode ser judicialmente questionado, considerado ilegal e ele ser processado. Ora, o conhecimento é diverso, não existe uma só verdade. Existem interpretações, entendimentos, muitas soluções. Deveria valer em primeiro lugar, e sempre, a responsabilidade dos técnicos que fizeram os estudos ambientais, acompanhados das respectivas ART’s. Criminalizar o analista do órgão ambiental que age sem dolo ou culpa está errado, e ajuda muito a estender os prazos e a insegurança dos processos de licenciamento.
8. O potencial hidrelétrico brasileiro hoje encontra-se concentrado na Amazônia Legal, onde também se localiza a maioria das populações indígenas brasileiras, que totalizam cerca de 600 mil pessoas. Na sua opinião o marco regulatório atual é adequado para proteger as populações indígenas ou seria necessário um marco regulatório especial, de modo que sejam garantidos todos os direitos das populações indígenas previstos na Constituição?
Resposta: Esse é mais um tema complexo. Existem muitas normas que garantem direitos às comunidades indígenas. Isso é legítimo. Porém existem também outras normas, inclusive na Constituição Brasileira, que obrigam o Estado a garantir o crescimento econômico e o atendimento das demandas de toda a sociedade. Uma das esferas para equacionamento de posições divergentes é o licenciamento ambiental. Porém, se os ritos a cada dia ficam mais complexos, se defesas de valores, princípios se transformam em iniciativas de agressão, teremos um cenário difícil de ser superado. Pensar em solução ganha-ganha seria o caminho. A cada usina, uma unidade de conservação ou regularização de território indígena afetado. Por que não destinar recursos da operação das usinas para as comunidades afetadas, fundamentado em critérios legais bem definidos?
9. O Sr. considera que existe preconceito ideológico, por parte de técnicos públicos, no processo de licenciamento de empreendimentos do setor elétrico?
Resposta: Não chamaria de preconceito. Mas penso que licenciar no modelo atual tem sido difícil. A sociedade não compreende bem a matriz energética. Não sabe que os países desenvolvidos do mundo sonham em ter uma matriz como a brasileira. Predominante sustentável, em boa parte pela hidreletricidade. E agora, pela expansão dos parques eólicos, solares e biomassa. Cada segmento desses tem tido mais e mais cobranças em seus processos de licenciamento. Parte da posição dos técnicos dos órgãos ambientais está aderente também à postura defensiva de seus órgãos, no sentido de fazer prevalecer a postura de precaução.
10. O Sr. considera que as empresas do setor elétrico dispõem de equipes devidamente qualificadas para tratar dos aspectos ambientais que envolvem os projetos do setor elétrico?
Resposta: Ninguém pode contestar a competência ambiental do setor elétrico. Desde a década de 90, quando a Eletrobras coordenou a elaboração dos manuais ambientais do Setor Elétrico Brasileiro, criando inclusive o modelo de licenciamento chamado trifásico, com LP, LI e LO, temos contribuído muito com o aumento do conhecimento geoambiental de muitas regiões do país, onde estudamos a implantação de empreendimentos do SEB. A cada estudo ambiental, centenas de informações científicas são geradas e colocadas a disposição da sociedade brasileira.
Mas é preciso alertar sempre, que a gestão ambiental tem fases distintas em um empreendimento. Ela atua na concepção, implantação e na operação. A relação com a sociedade é permanente e também o é com o ambiente afetado. E existem condicionantes ambientais em todas as fases. Situações eventualmente adversas, do ponto de vista financeiro, não podem significar a eliminação das estruturas e ações ambientais nas empresas do Setor.
11. No processo de implantação das usinas hidrelétricas, qual o percentual médio dos custos ambientais em comparação com os custos totais dos projetos?
Resposta: Podemos afirmar, com certeza, que os custos tem sido crescentes. Não porque os especialistas não consigam prever o que virá do ponto de vista ambiental, na implantação de uma usina hidrelétrica. Já fizemos tantos empreendimentos, e em todas as regiões, que o banco de dados existente e a experiência permitem a elaboração de orçamentos bastante factíveis. A questão é que os números finais que vão a leilão passam por portais bastante rígidos, que reduzem os valores iniciais para se garantir a atratividade. Esses valores, reduzidos pelas empresas elaboradoras, ou pela EPE ou TCU, garantem a realização dos leilões, nos quais os empreendedores ainda dão algum desconto. É sobre esses números aprovados, que recaem outros custos e obrigações sabidas e não contempladas.
Podemos destacar que entre 5% e 15% dos custos totais dos empreendimentos do setor elétrico são ambientais. E isso não tem nada a ver com muito ou pouco. E sim com o necessário.
12. Como o Sr. classifica a qualidade do diálogo hoje existente entre os empreendedores e os órgãos ambientais tipo Incra, Funai, Iphan, prefeituras, etc?
Resposta: Os diálogos tem sido sempre respeitosos e frutíferos, sendo perceptível o interesse de alguns deles na elaboração de procedimentos mais claros e seguros para orientar a ação do empreendedor em suas relações com os órgãos intervenientes durante o processo de licenciamento. As maiores dificuldades derivam da complexidade da integração entre estes entes, e de seus respectivos cronogramas de análise, ao processo de licenciamento ambiental.