Varejista pode mudar a história do mercado livre
Maurício Corrêa, de Brasília —
A rejeição dos comercializadores para aderir à proposta de atuarem como comercializadores varejistas está escondendo uma enorme disputa pelo mercado livre, o qual poderá sofrer grandes transformações no médio prazo. Todo o setor elétrico se surpreendeu, quando, no último Enase, o presidente do Conselho de Administração da CCEE, Rui Altieri, disse que apenas quatro comercializadores tinham formalizado pedidos junto à Câmara para atuar como varejistas.
Após o evento, a Abraceel — a associação dos comercializadores — saiu em campo imediatamente para tentar entender o que estava acontecendo. Ouviu os associados e descobriu que, de fato, existem algumas dúvidas técnicas em relação às normas, mas, sobretudo, há um forte receio, da parte de muitos comercializadores independentes, em assumir riscos de créditos que não possam bancar.
Entretanto, este site apurou que o principal entrave (a respeito do qual ninguém quer falar de forma explícita) diz respeito a uma enorme desconfiança da parte dos chamados comercializadores independentes — que são aqueles que não se vinculam a conglomerados empresariais do setor elétrico — que só agora descobriram que, com a adoção do varejista, correm o risco de serem “engolidos” pelos grandes comercializadores, principalmente aqueles que se vinculam a grupos de geração ou de distribuição ou aqueles que têm os dois segmentos.
As divergências superam em muito as questões semânticas que envolvem os termos “conglomerados” ou “independentes”. Os conglomerados, por serem empresas de maior porte, estão em condições de oferecer maior volume de garantias para operar nesse tipo de mercado, que é considerado uma espécie de filé mignon. Assim, eles poderiam atrair para o guarda-chuva dos chamados “grandes” muitos mais clientes do que os chamados “independentes”, pois poderiam trabalhar amparados inclusive nas garantias corporativas. Paradoxalmente, a proposta de criação dos comercializadores varejistas surgiu com os próprios comercializadores independentes, que, na época, não estavam antenados para essa questão da disputa do mercado.
Se essa hipótese se configurar, o mercado da energia livre passará por grande transformação, conforme avalia um consultor. Hoje, qualquer comercializador vende para qualquer tipo de cliente que pode se enquadrar na categoria livre. Mas, na medida em que os grandes comercializadores passarem a atrair clientes, na condição de varejistas, tudo indica que o negócio dos independentes vai mudar de perfil. Em vez de vender para os clientes finais, como fazem hoje com grande sucesso, eles provavelmente terão que fazer negócios apenas com os comercializadores de maior porte, o que mudaria completamente a lógica do negócio. Nessa nova configuração, os independentes provavelmente perderiam grande parte da receita que têm hoje.
E não estamos falando de pouca coisa. Os valores dos contratos no mercado livre são confidenciais e apenas do conhecimento das partes que compram e vendem. Entretanto, com base no volume da energia que passa pelo mercado livre, estimando-se um preço médio de mercado, hoje, essa fatia do mercado da energia elétrica no Brasil representaria algo em torno de R$ 45 a 50 bilhões por ano. Esse valor pode aumentar mais ainda devido à forte migração que está ocorrendo com a adesão de novos clientes industriais ao mercado livre, principalmente na Zona Franca de Manaus.
Isso, sem contar as perspectivas de abertura do mercado, conforme indicado no próprio Enase, pois as principais autoridades do setor elétrico — apesar da forte resistência dos distribuidores e de alguns segmentos da geração — já admitem que poderá ocorrer uma flexibilização. Se não vier a abertura total do mercado de energia elétrica, inclusive ao nível de consumidores residenciais, como quer a Abraceel, é bem possível que ocorra pelo menos uma ampliação do atendimento, na faixa do mercado livre, para as categorias de consumidores industriais que hoje não se beneficiam dos preços da energia livre, que são mais competitivos do que as tarifas praticadas no mercado cativo das distribuidoras.
“É briga de cachorro grande”, opinou um atento consultor que acompanha as atividades do mercado livre. Ele prefere falar em off, considerando que o seu portfólio de clientes se situa tanto na faixa dos independentes quanto dos grandes. Na realidade, como explicou a mesma fonte, essa disputa é antiga e ocorre desde o início do mercado livre. A princípio, era um negócio que envolvia comercializadoras vinculadas a outros segmentos (principalmente a distribuição), mas, com o tempo, surgiram muitos comercializadores independentes, mais ágeis na forma de negociar, que passaram a ocupar mais espaços no mercado.
No início dos anos 2000, quando começou a decolar o mercado livre, os termos eram outros. Os comercializadores independentes eram classificados como “puros”, ou seja, empresas que apenas atuavam nesse segmento, sem integrar grupos econômicos. Por outro lado, os “impuros” eram os comercializadores vinculados aos grupos de distribuição ou geração. A Abraceel levou anos para se livrar desses termos, que considerava pejorativos, até que conseguiu. Hoje, eles foram substituídos pelos “grandes” ou “independentes”, pois, filosoficamente, a luta continua em torno de um mercado cada vez mais promissor, ainda mais com as perspectivas de abertura que se avizinham. Ultimamente, inclusive, tem sido observado um interesse de instituições financeiras nesse mercado, como, aliás, já ocorre na Europa ou nos Estados Unidos.