Walfrido Ávila: uma história de vida que se confunde com o mercado livre
Maurício Corrêa, de Brasília —
O mercado livre de energia elétrica no Brasil deve uma espécie de tributo ao engenheiro Walfrido Ávila, que participou intensamente de todos os momentos fundamentais que marcam a história do segmento no Brasil. Fundador da primeira comercializadora, ele também assinou o primeiro contrato com um consumidor livre. Foi um dos quatro especialistas que, no início de 2000, se sentaram em torno de uma mesa, em Brasília, e constituíram a Abraceel, a associação dos comercializadores, da qual participou do Conselho de Administração e o presidiu por bom tempo.
Embora radicado no Paraná há muitos anos, Ávila nasceu em Blumenau, Santa Catarina. Filho, neto, bisneto, sobrinho, irmão e pai de engenheiros, ele deixou a cidade natal de colonização alemã e foi estudar Engenharia Civil em Curitiba, onde se formou em 1971.
Sua família, na realidade, tem raízes em Pernambuco e Bahia. O avô era chefe do Departamento Nacional de Estradas de Ferro, no Rio de Janeiro, durante o Estado Novo. O pai, também engenheiro, mudou-se para Blumenau para participar da construção da ferrovia de 250 km que ligava Itajaí à localidade de Trombudo Central (20 km de distância de Lajes).
Esse trecho ferroviário existiu durante vários anos, mas acabou sendo desativado depois de 1964, quando se passou a valorizar o transporte rodoviário e, aos poucos, o sistema ferroviário foi se transformando em sucata.
Com 16 anos de idade, Walfrido viu um cinejornal que falava da construção das hidrelétricas de Urubupungá, Jupiá e Ilha Solteira. E pensou: “Gostei disso. Vou ser engenheiro. Quero trabalhar nesse negócio”. Deu certo.
Antes mesmo de se formar engenheiro já trabalhava na Copel, como estagiário. Ficou 30 anos na estatal paranaense de energia elétrica, até se aposentar, em 1998.
Na Copel, Walfrido Ávila adensou a sua história com a área de energia elétrica, tendo participado da construção ou do desenvolvimento dos projetos das hidrelétricas de Foz do Chopim, no rio Chopim; e Salto Osório, Foz do Areia, Segredo e Salto Caxias, usinas construídas no rio Iguaçu.
Durante o período de Copel, ele ainda teve oportunidade de ocupar funções gerenciais, aprofundando os seus conhecimentos sobre financiamento de projetos de geração e comercialização de energia elétrica. Assim, durante cinco anos foi assistente da Presidência da Copel.
Um divisor de águas na sua carreira profissional ocorreu em 1995, quando foi designado para representar a empresa paranaense junto ao Projeto RE-SEB, que estava sendo ativado em Brasília com o objetivo de modernizar o setor elétrico. O Projeto RE-SEB gerou várias iniciativas que hoje ainda caracterizam o mundo da energia elétrica no País.
A sucessão de novas leis que modificaram o setor elétrico, entre 1995 e 1998 (surgindo o consumidor livre, o produtor independente, a Aneel e outras reestruturações), coincidiu com a aposentadoria de Ávila no início de 1998. Naturalmente, ele se envolveu nas tratativas para constituição da Tradener, a primeira comercializadora brasileira, sacramentada em 28 de julho de 1998.
Como ele mesmo conta, a criação da Tradener foi uma espécie de epopéia, pois se tratava de uma situação nova. Durante 100 anos, desde que surgiu a energia elétrica no Brasil, na pequena usina de Marmelos, em Juiz de Fora (que hoje faz parte do portfólio histórico da Cemig), o setor elétrico conheceu apenas os segmentos de geração, transmissão e distribuição, com fornecimento aos consumidores cativos. Através das mudanças introduzidas pelo Projeto RE-SEB, surgiu um quarto segmento, a comercialização, com o atendimento ao mercado dos consumidores livres.
“Foi uma mudança e tanto. Para todos nós, entretanto, tudo era novo. Ninguém sabia direito como fazer para que o mercado livre se transformasse em realidade. Foram tempos duros, mas hoje é possível observar que todo o sacrifício não foi em vão. O mercado livre está devidamente consolidado, o que é muito bom para os consumidores e o País”, comentou Ávila.
O projeto de constituição da Tradener envolveu outros especialistas. Ávila faz questão de destacar o papel desempenhado pelo falecido Fábio Ramos, também originário dos quadros da Copel. No desenho original do projeto, a Copel inicialmente buscou uma parceria com empresas estrangeiras que já atuavam com comercialização no exterior, o que acabou não se concretizando.
Assim, a primeira comercializadora do Brasil, cujo nome surgiu naturalmente a partir da contração da expressão “trade de energia”, começou em 1998 com 55% do capital em poder da Logos, uma empresa de engenharia de São Paulo representada por Ramos, e 45% da Copel. Nessa ocasião, por sua especialização no novo modelo setorial, Walfrido Ávila foi escolhido para presidir a empresa.
No ano seguinte, em uma primeira reestruturação societária que buscava priorizar investimentos do Paraná, a Copel ficou com seus 45% e o restante foi dividido em partes iguais entre a Logos e a DGW, uma empresa paranaense de participações que tem Ávila como um dos quotistas.
Já tendo participado dos primeiros movimentos do mercado livre, inclusive em 2002 da criação do MAE e de sua primeira liquidação financeira, no ano de 2003 a empresa levou um choque societário com a decisão da Copel de retirar-se da sociedade. Quando isso de fato aconteceu, o capital foi dividido em partes iguais entre a Logos e a DGW.
Em seguida, a Logos se juntou com a holandesa Arcadis e passou a se chamar Arcadis Logos, cujo foco era a área de projetos de engenharia. Houve então nova cisão societária, e a Tradener passou a ser uma empresa controlada pela DGW.
Walfrido Ávila se entusiasma quando conta os detalhes que levaram à assinatura do primeiro contrato envolvendo um consumidor livre no Brasil, que foi a paulista Carbocloro, um fabricante de cloro, até então um cliente cativo da distribuidora Bandeirante, que se localizava na região de Cubatão.
“Na história do mercado livre brasileiro, [o empresário Mário] Cilento ocupa um lugar de honra. É verdade que eu e meus colegas da Tradener nos envolvemos de corpo e alma para fechar o primeiro contrato. Mas se não fosse o empenho de Mário Cilento do outro lado, o contrato não sairia. Desde o primeiro instante, ele compreendeu com clareza quais benefícios o mercado livre poderia significar para a Carbocloro e não abriu mão do direito de exercer essa opção. Quando se escrever, um dia, a história do mercado livre no Brasil, é preciso dedicar um capítulo ao Mário Cilento”, alegou Walfrido Ávila.
A assinatura do contrato envolvendo a Carbocloro, a Copel e a Tradener, foi outra epopéia, segundo a expressão do próprio presidente da comercializadora. Dos tempos iniciais do “namoro”, até ao “casamento”, ou seja, o fechamento do contrato, foram gastos seis meses, entre março e novembro de 1999. “A Carbocloro era um cliente de carga grande, cerca de 100 MW. Depois de muita luta, ganhamos o contrato. Foi preciso muita paciência, mas valeu a pena”, afirmou Ávila.
“Ninguém sabia direito o que fazer com aquele contrato, pois tudo era novidade: o mercado livre, o consumidor livre, o MAE, a própria Bandeirante, a Aneel, a Copel. Em alguns momentos, nós, da Tradener, pensávamos em desistir de tudo aquilo, pois era uma burocracia infernal, que não chegava em lugar nenhum. Posso dizer que o arcabouço legal foi sendo criado aos poucos, à medida que precisávamos avançar com o contrato da Carbocloro. Todos nós, da Tradener, nos orgulhamos muito de termos participado com tanta intensidade dessa história nos primeiros passos do mercado livre de energia elétrica no Brasil”, disse.
Hoje, a Tradener é uma comercializadora de primeira linha, figurando entre as cinco maiores do grupo de traders independentes, ou seja, aqueles que não são estatais ou controlados por grandes grupos de energia elétrica. Com 60 empregados, está no mesmo nível das mais importantes comercializadoras hoje atuantes. Há pouco tempo, a Tradener incorporou a Trade Energy, também de Curitiba, que foi uma das quatro empresas que fundaram a Abraceel (as outras duas foram a Eletrobras e a extinta Enron).
No início de 2000, embora existissem apenas quatro comercializadores, já se percebia que era necessário criar uma associação, não apenas para dialogar com o Governo — que não entendia absolutamente nada sobre o mercado livre – mas também para ajudar a construir a estrutura legal que pudesse amparar as operações dos comercializadores.
Mário Menel, então representante da Trade Energy (e que participou diretamente da constituição das associações Abiape, Abraceel, Abragef e Apine), um dia teve a ideia de organizar os comercializadores em torno de uma associação, com sede em Brasília. Além dele e Walfrido participaram da reunião Luiz Maurer, pela Enron, e Boris Gorenstein, da Eletrobras.
Na primeira reunião da Abraceel, surgiu a dúvida a respeito de quem seria o primeiro presidente (naquela época, o presidente do Conselho tinha funções executivas, pois a associação ainda era muito pequena e sem recursos). Surpreendentemente, dos quatro, dois (Walfrido e Maurer), manifestaram interesse em assumir o comando da nova associação.
Diante do impasse, Menel e Boris decidiram que os dois candidatos se retirariam da mesa e que eles próprios (que não estavam interessados em ser presidente) tomariam uma decisão, que foi salomônica: nos dois anos iniciais do mandato inicial, Walfrido ficaria o primeiro ano e Maurer, o segundo. Assim foi.
Durante 10 anos, Walfrido Ávila ocupou uma cadeira no Conselho da Abraceel. “Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. Afinal, vi o mercado nascer e, na medida que foi se expandindo, tive a oportunidade de conviver com outros especialistas, todos preocupados em fazer com que a associação se consolidasse. Tenho orgulho de até hoje a Tradener pertencer ao quadro associativo da Abraceel, que é uma associação diferente, com uma governança única, que traduz os múltiplos tipos de interesses dos seus associados. É uma bela história, sem dúvida”.
Embora continue firme no negócio de comercialização, a Tradener está aos poucos se voltando também para o segmento da geração. “É importante ter um pouco de geração na carteira. O mercado como um todo dá muitas voltas e com um pouco de geração na prateleira é possível formatar determinadas operações com mais tranquilidade”, opinou.
Além disso, a Tradener ganhou em leilão o direito de tocar o projeto de uma Pequena Central Hidrelétrica com capacidade para gerar 17 MW, localizada no rio São Bartolomeu, em Goiás. A empresa tem prazo de 36 meses para entregar a usina pronta. A Tradener também está desenvolvendo dois projetos eólicos no Estado do Rio Grande do Sul e se prepara para ingressar na área de gás natural.
“Há muita sinergia entre a área de GN e a energia elétrica. Então, estamos na fase de montagem da nossa equipe que vai trabalhar na área de gás, pois queremos estar na vanguarda. O mercado brasileiro de gás atravessa um momento extremamente positivo, com chances extraordinárias de expansão, face às alterações regulatórias que surgem em consequência do afastamento da Petrobras”, comentou Ávila.
A Tradener não está de olho apenas nas perspectivas regulatórias abertas pelo mercado de gás natural. Recentemente, a empresa obteve o direito de exploração do poço de Barra Bonita, que fica localizado no município paranaense de Pitanga. Esse poço tem potencial até 90 mil metros cúbicos de gás natural por dia, mas a empresa acredita que a média ficará em torno de 30 a 50 mil metros cúbicos/dia. “Pretendemos iniciar a exploração do poço até o final de 2017”, explicou o presidente da Tradener.
Para Walfrido Ávila, o mercado de energia está passando por uma ebulição, depois de anos de absoluta letargia, face ao excesso de intervenção estatal. “Pouca coisa era permitida no Governo anterior, que privilegiava o papel do Estado em detrimento da iniciativa privada. Agora, como o Estado está falido e não tem mais recursos para investir, volta-se novamente para a iniciativa particular. Acredito que não apenas a Tradener, mas o setor empresarial como um todo, tem excelente chance para crescer. Temos tido, ao longo da nossa história, uma atuação discreta, mas firme e contínua, qualificando o nosso pessoal e aprendendo a cada dia. Estaremos prontos para decolar no momento em que o Brasil romper as amarras do imobilismo e voltar a crescer”, complementou.
Ávila entende que é fundamental persistir na busca de alguns objetivos, que são permanentes. Um deles é alcançar a mais absoluta transparência na tomada de decisões, em todos os níveis, seja no MME, no ONS, na CCEE, na Aneel e até na própria EPE. “O nosso setor elétrico tem um histórico de eficiência, pelo qual devemos brigar sempre. Obviamente, todos nós, que militamos no mercado livre, sonhamos com o dia em que os preços de mercado existirão em decorrência da oferta e da demanda”, finalizou.