Claudio Girardi: não se pode olhar só para o consumidor
Maurício Corrêa, de Brasília —
As mudanças introduzidas nos últimos 20 anos, entre outras conseqüências, resultaram no crescimento da quantidade de advogados que se especializaram nas questões do setor elétrico brasileiro. Poucos o conhecem tão bem, entretanto, quanto Claudio Girardi, que, ainda adolescente, começou como leiturista de medidor da Celesc, no interior de Santa Catarina, e foi subindo degraus na carreira, até alcançar a posição unânime de ser um dos maiores conhecedores de parte substancial do arcabouço legal do SEB, que, aliás, ele mesmo ajudou a construir no DNAEE, no MME e na Aneel.
Em dezembro de 2008, Girardi se aposentou do serviço público, ao qual se dedicou quase 39 anos. Nos últimos 11 anos, tinha sido procurador-geral junto à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), quando participou diretamente da montagem do conjunto de normas que regem o setor elétrico.
Desde que se aposentou no serviço público, abriu o seu próprio negócio e hoje, coordena, em Brasília, um escritório muito demandado por empresas de variados perfis, interessadas em resolver os seus litígios no complexo e pouco conhecido campo jurídico da área de energia elétrica.
Girardi nasceu em 1953, no Município de Erval Velho, no meio-oeste de Santa Catarina, distante cerca de 400 km da capital estadual, Florianópolis. É uma região de colonização majoritariamente italiana. Seu avô italiano chegou ao Rio Grande do Sul em 1891 e, em 1923, a família decidiu migrar novamente, desta vez para desbravar o interior de Santa Catarina.
O pai, Sr. Domingos, vendia porcos para o Frigorífico Sadia, da família Fontana, da qual era contemporâneo. Também se relacionava com os Brandalise, que eram donos da Perdigão. Mais recentemente, as duas empresas se fundiram e deram origem à BRF, que é uma das locomotivas da economia catarinense e forte indutor do desenvolvimento do meio-oeste do Estado.
Quando Girardi nasceu, o pai era proprietário de um moinho de trigo e possuía cotas de importação do grão da Rússia e da Argentina, que transformava em farinha. A mãe, Dona Elza, não podia fazer muita coisa a não ser cuidar da enorme família: Girardi foi o 15º de 17 filhos do casal.
Quando conta a sua história de vida, o próprio Claudio Girardi se espanta com algumas coincidências, pois, para tocar o moinho em uma região que era carente de serviços de eletricidade, o pai teve que construir uma Central Geradora Hidrelétrica – CGH, utilizando equipamentos alemães.
Ele passou 10 anos nesse local e teve uma infância bilíngüe, pois, com o avô italiano, que nasceu em Conco, uma aldeia do Vêneto, só falava no dialeto da província. Em 1964, a família mudou-se para a pequena cidade de Campos Novos, a 40 quilômetros do local onde vivia, o que veio a ser outra coincidência em sua vida. Afinal, muitos anos depois, foi construída na região a UHE Campos Novos, no rio Canoas, que se caracteriza por ser a quarta mais alta do mundo do tipo enrocamento com face de concreto, com 202 metros de altura e está em operação desde 2006. É uma usina controlada pela CPFL Geração, Grupo Votorantim e CEEE. Girardi já trabalhava no Ministério de Minas e Energia, quando participou diretamente da elaboração do edital de leilão daquela usina.
Com emoção, ele lembra que os tempos duros da infância no interior de Santa Catarina, sempre com muito frio e eventualmente neve, também foram compensados pela convivência familiar.
“Meus pais sempre incutiram nos filhos a responsabilidade em relação ao trabalho, o que é uma característica forte dos imigrantes”, afirmou, lembrando que, nesse contexto, ainda menino ajudava a cuidar dos porcos, que significavam grande parte do sustento familiar. “Isso me ajudou muito a ter uma compreensão mais abrangente a respeito dos desafios da própria vida”, alegou.
Só que, em meados dos anos 60, quando a economia brasileira ainda era muito atrasada e a região sentiu profundamente os impactos da restrição monetária aplicada pelo regime militar, depois de abril de 1964, com objetivo de controlar a inflação, foi acesa uma luz vermelha para os negócios do pai, que comprava e vendia fiado, devido à diminuição do meio circulante. Foi inevitável entrar em concordata em 1966. Para sobreviver e cuidar de uma família enorme, o pai teve que se virar como vendedor de loterias.
Girardi cresceu observando tudo isto, principalmente uma frase que se falava muito dentro de casa: “Quem compra terra, não erra”. Foi testemunha do “débâcle” empresarial do pai e, ainda pré-adolecente, ficou dois anos trabalhando num pequeno mercado pertencente ao irmão.
Sua relação mais direta com o SEB começou em 1970, quando, aos 16 anos, ingressou na Celesc como leiturista de medidor de consumo e entregador de contas. Oficialmente, era um “Office boy” e ficou oito meses nessa função. “Aprendi bastante. Tanto que, aos 20 anos, já era presidente da Cipa (a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) e presidente da associação dos funcionários da agência da Celesc em Campos Novos.
Nessa época, Girardi mergulhou em um mundo que, sem que pudesse adivinhar, muito serviu para a futura experiência como advogado. Em regiões de colonização italiana em todos os estados onde esse fenômeno se repetiu, a presença comunitária da Igreja Católica é muito forte. Em Campos Novos, não poderia ser diferente.
Nessa época, Girardi começou a participar de encontros de jovens cristãos, que, além das reuniões semanais, periodicamente, promoviam encontros de três dias com a presença de dezenas de participantes de vários municípios catarinenses. Como Girardi era quem coordenava tais encontros, aprendeu a se expressar em público, o que é fundamental na vida de um advogado.
Ele saiu de Campos Novos aos 20 anos de idade. Ficou lotado na Celesc em Florianópolis, mas logo foi trabalhar durante dois meses na cidade de Chapecó, coordenando o cadastramento de clientes, uma vez que a Celesc havia incorporado a empresa Força e Luz de Chapecó, que fazia a distribuição de energia na cidade. Depois, viajou muito pelo Estado para suprir férias dos chefes das áreas comerciais das agências regionais da Empresa.
Começou o curso de Direito, em 1976, na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Vale do Itajaí. Isto, sim, era uma tremenda dificuldade no dia a dia. Ao final do expediente em Florianópolis, pegava um ônibus e viajava 90 km até Itajaí, retornando no início da madrugada, pois, às 7h30m, já era necessário iniciar um novo expediente de trabalho na Celesc.
Nesse período, teve uma espécie de fenômeno premonitório, pois começou a pensar em algum tipo de oportunidade para trabalhar no Governo Federal, em Brasília, tendo expressado isso, por duas vezes, em um diário que mantinha desde a adolescência.
Até que um dia, já com o canudo de advogado nas mãos, o destino permitiu, casualmente, que se encontrasse com Benedito Carraro, um executivo da Celesc que trabalhava em Brasília, como cedido, e com quem havia trabalhado na Celesc. Daí, surgiu o convite para trabalhar no antigo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), um órgão antecessor da Aneel, embora guardasse uma certa distância de uma autêntica agência reguladora, nos moldes atuais, considerando que o modelo então vigente era quase que totalmente estatizado.
Pelas mãos de Carraro, Girardi chegou ao DNAEE, em Brasília, em agosto de 1980. “Desde então, me identifiquei com a cidade, que é extraordinária. Tem, hoje, várias situações complexas de qualquer área metropolitana, mas é um lugar que mantém ainda excelente qualidade de vida”, afirmou.
Em Brasília, ele lembrou-se da frase que ouvia dentro de casa, nos momentos difíceis quando o pai entrou em concordata. Por isso, fez um investimento de longo prazo no Entorno de Brasília e, há 28 anos, é proprietário de uma belíssima chácara de seis hectares, localizada na região do Lago Oeste, distante apenas 25 km do apartamento onde mora com Dona Magali e o filho Giorgio (estudante de Direito), na Asa Norte.
Dona Magali também é catarinense, do Município de Lajes, e o casamento dura 37 anos. Eles têm outro filho, Cláudio Domingos, casado, e que gerou o segundo neto, dedicando-se profissionalmente às atividades relacionadas com a paixão da sua vida, que é o ciclismo.
A sua vida profissional de advogado do setor elétrico se iniciou efetivamente no DNAEE, na equipe que era comandada por outro grande especialista no assunto, David Waltenberg, que era o chefe do departamento jurídico. Em 1983, Waltenberg desligou-se do DNAEE e Girardi assumiu a chefia do setor, em caráter temporário.
Nas voltas que o mundo de Brasília costuma dar, às vezes virando os órgãos e técnicos de pernas para o ar, quando veio o Governo Collor o setor elétrico institucional sofreu um forte abalo, com o fim das atividades das Pastas de Minas e Energia, Comunicações e Transportes, unificadas no Ministério da Infra-Estrutura, que só existiu durante a gestão do “caçador de marajás”.
A Companhia Auxiliar de Empresas Elétricas Brasileiras (CAEBB), uma estatal que fornecia mão-de-obra para outras estatais, foi extinta. Na área de Energia do Ministério de Minas e Energia/Infra-Estrutura, havia 24 advogados, a maioria contratada através da CAEBB. Girardi ficou sozinho, pois era cedido pela Celesc. Acabou responsável pela recomposição da equipe e virou o novo chefe. Em 1991, passou a ser lotado oficialmente na Consultoria Jurídica do Ministério da Infra Estrutura.
A virada dos anos 80 para os anos 90 e posterior mudança de presidente da República, com a saída de Collor e a efetivação do seu vice, Itamar Franco, alterou a agenda de trabalho do recomposto Ministério de Minas e Energia.
“Havia muitos problemas, o sistema estava estrangulado e era necessário modernizar o nosso arcabouço legal, de modo a permitir o ingresso de investidores privados, nacionais e internacionais, considerando que o setor público já demonstrava total exaustão financeira. Nosso trabalho consistiu principalmente em preparar as bases para a mudança da legislação vigente”, explicou.
Em 1992, com a recriação do Ministério de Minas e Energia, foi alçado ao cargo de coordenador de Águas e Energia da Consultoria Jurídica da Pasta, tendo sido nomeado também para a função de substituto do Consultor Jurídico do MME, função esta que exerceu até a sua ida para a Aneel.
Nesse contexto, Girardi se orgulha de ter coordenado o trabalho que possibilitou a criação dos chamados consórcios de geração de energia elétrica (na gestão do ministro Paulino Cícero) que viabilizaram várias obras que estavam paradas. “A nossa preocupação básica, na época, era ampliar o parque gerador”, assinalou.
Já em 1994, quando ocorreu a substituição do presidente Itamar Franco pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, Girardi esteve envolvido com a proposta de criação dos produtores independentes (o que acabou acontecendo um ano depois) e também com a viabilização das usinas térmicas a gás natural. “Era preciso correr contra o tempo para estimular investimentos privados, sem depender das estatais, que não tinham mais recursos para investimentos”, esclareceu.
Da criação dos PIE´s aos consumidores livres, foi um passo natural, que acabou efetivando a grande mudança histórica do setor elétrico brasileiro, ao permitir o funcionamento do mercado livre.
“Não foi fácil trabalhar nesse tipo de ambiente. Vale lembrar que o setor era essencialmente estatal, de características centralizadoras. Mudar esse quadro de hora para outra exigiu muito estudo, paciência e dedicação”, complementou, lembrando que a Constituição Federal de 1988 ajudou a dinamizar a presença de investidores privados, considerando que o setor estatal tinha perdido a capacidade de investimento. “O Estado passou a ser regulador e fiscalizador, saindo da sua condição histórica de possuidor de ativos em áreas que eram consideradas essenciais, como a energia elétrica. Foi uma mudança e tanto”.
No MME, já na gestão FHC, Girardi participou de uma equipe que, entre outros, possuía o ministro Raimundo Brito e o secretário de Energia, Peter Greiner. Em 1995, houve a contratação da empresa britânica de consultoria Coopers & Lybrand, que, anos mais tarde, se transformou na letra “C” da gigante global PwC (PricewaterhouseCoopers).
O trabalho do MME com a Coopers resultou nas grandes mudanças institucionais ocorridas no setor elétrico brasileiro, a partir de maio de 1998, com o surgimento do Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE, atual Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE), a criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). A Aneel surgiu um pouco antes, em dezembro de 1996 foi publicada a lei de criação e o seu funcionamento efetivo ocorreu em dezembro de 1997.
Convidado pelo próprio ministro Raimundo Brito, Girardi se transferiu para a Aneel, ocupando o cargo de chefe da Procuradoria Geral até a aposentadoria, em 2008. “Na Aneel, fui testemunha de um trabalho extraordinário visando à edificação de uma agência reguladora moderna, dotada de pessoal qualificado e estruturada para exercer o papel de defensora dos consumidores e de equilíbrio entre os diversos agentes”.
Hoje, olhando para os 20 anos de existência da Aneel, Claudio Girardi não tem qualquer dúvida que a agência foi um elemento modernizador no sistema elétrico brasileiro e que os resultados que ela oferece não podem sequer ser comparados aos do tímido DNAEE, que era um organismo desenhado para funcionar em um ambiente onde existiam apenas empresas estatais.
Embora seja otimista em relação à Aneel, para Girardi é necessário fazer uma ponderação, considerando que sucessivos governos, sob o argumento de contenção de gastos públicos, têm drenado recursos da agência, prejudicando imensamente as atividades regulatórias e de fiscalização.
“Esses recursos são liberados a conta gotas, o que provoca enorme dificuldade na realização dos trabalhos previstos para a Agência. É imperativa a necessidade de equilibrar rapidamente as contas públicas, para que os recursos das agências reguladoras não sofram esse tipo de contingenciamento”, disse o advogado.
De fato, o universo em que a Aneel opera é completamente diferente daquele do antigo DNAEE. Hoje, por exemplo, há agentes que simplesmente não existiam até meados dos anos 90, como geradores eólicos, produtores independentes, comercializadores e até mesmo as fortes associações empresariais do setor elétrico, cada um puxando a sardinha para a sua brasa. Cabe à agência o papel de equilibrar tudo, olhando principalmente para o consumidor.
Para Girardi, entretanto, o papel da agência não pode pender para um lado em detrimento do outro e a busca do equilíbrio deve ser precisa a cada dia. “Essa é uma característica fundamental da Aneel, que tem a responsabilidade histórica de preservar o setor elétrico. Então, ela não pode só beneficiar o consumidor e esquecer os interesses e direitos dos investidores, sem os quais os consumidores não terão a prestação do serviço de forma adequada, como manda a lei.
Para o advogado catarinense, por uma série de questões de natureza política, em algumas circunstâncias a Aneel perdeu o viés de preservar o equilíbrio das concessões e acabou punindo investidores em defesa dos consumidores, que, na sua visão, é exagerada.
No que tange a implantação de obras necessárias à expansão do setor elétrico ele cita exemplos em que alguns “xiitas ambientais”, que fazem exigências para os empreendedores que vão além do razoável. “Nestes casos, os investidores ficam impedidos de cumprir os cronogramas e a Aneel os pune, inclusive com ameaça da perda das outorgas, o que é um absurdo”.
“Essa forma de atuação da Aneel não é justa. A agência precisa ter um pouco mais de moderação em determinadas situações, pois é muito cômodo ficar de forma passiva, nessas questões ambientais, e depois simplesmente punir os investidores”, alegou. Para Girardi, é fundamental que a Aneel reveja a sua estratégia, pois não pode apenas punir por punir. A agência tem um papel pedagógico a exercer, segundo Girardi, e contribuir com a viabilização dos empreendimentos.
No seu entendimento, a agência precisaria levar as informações sobre o setor elétrico aos órgãos ambientais, ao Ministério Público Federal e Estadual, pois tudo o que se passa no arcabouço legal do setor elétrico é extremamente complexo e poucos que não são do ramo estão em condições de acompanhar os temas.
Ele cita o exemplo de uma linha de transmissão qualquer, que precisa passar sobre determinadas áreas polêmicas. “Não tem como. Se você quer interligar o sistema, precisará passar linhas de transmissão sobre rios, áreas ambientais ou aldeias indígenas, por exemplo. Então, é preciso nivelar a informações com o MME, o Ministério do Meio Ambiente, organismos estaduais de defesa do meio ambiente e o Ministério Público”. Esses órgãos hoje trabalham em mundos opostos, daí as cruciais dificuldades. É preciso convergência para uma atuação equilibrada de todos.
No seu discurso de despedida da Aneel, em 2008, ele disse: “Sempre tive a clara consciência do papel que deveria desempenhar, qual seja, o de um servidor público, o que, nas sábias palavras do saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles, consiste em servir ao público… Contudo, meu trabalho foi facilitado, porque inspirado na personalidade forte do meu pai e na serenidade de minha mãe. Nunca tive medo de decidir, de fazer, de executar, de solucionar os casos que eram submetidos à apreciação da Procuradoria, sempre com a segurança jurídica que as decisões dos meus superiores deveriam ser dotadas… Orgulho-me de ter dedicado quase toda a minha existência ao setor elétrico, o qual é de vital importância para o desenvolvimento da nação brasileira”.
Sempre trabalhando muito, Girardi aproveita os finais de semana para ir à chácara e recompor as energias. Ele gosta de música, mas acha que a música, hoje, é apenas uma fotografia pálida daquilo que já representou no passado. Então, o seu gosto musical está parado nos anos 90 porque considera que “a boa música acabou”.
Uma outra paixão pessoal, que poucos conhecem, é a Numismática. Quando menino, ganhou uma coleção de moedas do pai e nunca abandonou o hábito. Foi, em 1996, um dos fundadores da Associação Filatélica e Numismática de Brasília, onde curte a sua admiração por cédulas e moedas brasileiras e estrangeiras.
Ele participa das reuniões da associação no primeiro sábado de cada mês e, em seguida, se manda para a chácara, onde nunca parou de plantar árvores e está sempre em conexão com a terra.
É um leitor super-interessado em questões relacionadas com a História, a Política e a Religião, mas, no seu dia a dia, também encontra tempo para uma outra paixão, que é acompanhar as notícias sobre o Flamengo, o seu time do coração.