No PR, veículos usam biometano de biogás
Maurício Corrêa (*), de Paraíso do Norte (PR) —
Grandes projetos, que resultam em fortes impactos econômicos, muitas vezes surgem de ideias simples. Isso aparentemente está acontecendo na área rural do pequeno município de Paraíso do Norte, no noroeste do Paraná, onde o biogás produzido pela Geo Energética, a partir de resíduos da cana de açúcar, é purificado pela Acesa Bioenergia e se transforma em biometano, que já está sendo utilizado em motores de veículos como gás natural veicular.
O potencial econômico dessa alquimia é enorme. Se esse processo de alterações químicas vai se transformar numa espécie de pedra filosofal, só o futuro dirá. A fabricante alemã de veículos Audi acredita no desenvolvimento do projeto. Tanto que trouxe um Audi A5 Sportback g-tron da Alemanha para testar o biometano.
O teste realizado nesta segunda-feira, 26 de novembro, na planta da Geo Energética, foi um sucesso. Abastecido com o biometano da Geo e da Acesa, o veículo rodou bem e atendeu às exigências do seu potente motor dotado de 170 cavalos.
O A5 da Audi já é comercializado no Brasil, com motor a gasolina. O modelo a gás está disponível por enquanto na Alemanha, onde é um dos 21 veículos da marca montados na gigantesca fábrica de Ingolstadt, localizada nas proximidades de Munich.
Gabriel Kropsch, diretor da Acesa Bioenergia, destacou que a obtenção do biometano é “a realização de um sonho, pois já estamos há quase 30 anos no mercado de gás natural. E o que está acontecendo aqui é um notável avanço”.
Tendo começado na empresa como simples estagiário, até ser um dia convidado para se transformar em sócio, ele é um entusiasta dos múltiplos usos do biogás.
“O projeto tem muita relevância, pois, no Brasil, a rede de distribuição de gás canalizado basicamente está instalada na costa do Atlântico ou penetra muito pouco pelo território brasileiro. Com o biometano, surge uma oportunidade para que o gás natural se interiorize de forma rápida e descentralizada, o que representa uma mudança e tanto de paradigma na matriz energética brasileira”, acrescentou Kropsch.
Como explicou, os empresários do setor sucroalcooleiro, por exemplo, poderão ter acesso a um combustível mais barato e 100% renovável, na medida em que suas máquinas e seus caminhões possam substituir o diesel pelo biometano. “Não tenho dúvida que dentro de pouco tempo, com a solução aqui apresentada, poderemos ver todos os caminhões a diesel das usinas convertidos para o biometano”, afirmou Kropsch.
A primeira planta da Acesa, instalada dentro da área da Geo, é de pequeno porte, mas é mais do que um simples experimento. Embora produza em quantidade reduzida, sob o ponto de vista da tecnologia não restam mais dúvidas. “Temos muito chão pela frente, mas em outras áreas. Aqui, já está resolvido”, garantiu.
Gabriel Amábile, especialista da área de Engenharia de Desenvolvimento da Audi do Brasil, esclareceu que, ao contrário dos veículos que, para utilizar o gás natural veicular, no Brasil, precisam efetuar uma adaptação em carros originalmente a gasolina, instalando enormes cilindros dentro do porta-malas, o Audi A5 Sportback g-tron já conta originalmente com quatro tanques que dispõem da capacidade de armazenamento de 22 metros cúbicos de gás natural. Esses tanques (feitos de fibra de carbono e fibra de vidro) já fazem parte da engenharia do automóvel e são acomodados sob o veículo.
Um detalhe técnico relevante: o veículo alemão é classificado como flex, no sentido que é bicombustível, pois roda a gasolina e a gás. Entretanto, ele é feito para rodar a gás e o tanque de 25 litros de gasolina é apenas uma espécie de socorro, caso o motorista tenha dificuldades para localizar de imediato um lugar onde possa efetuar o abastecimento a gás. “O foco da Audi é reduzir o gás carbônico. Então, nesse veículo a gasolina é um combustível apenas secundário, considerando que o gás veicular é encontrado quase que apenas na costa”, esclareceu Amábile.
O A5 Sportback g-tron da Audi já rodou quase 12 mil km, sendo 9 mil utilizando o gás natural. O histórico dos testes mostra que 55% da rodagem ocorreu em áreas urbanas. O custo por km rodado de gás do Sportback tem saído por R$ 0,16, enquanto quando roda a gasolina sobe para R$ 0,35. E há outras considerações de natureza técnica, até porque trata-se de um veículo construído para rodar na Europa. Mesmo assim, utilizando a gasolina brasileira, ele tem um bom desempenho, até porque o combustível já conta com uma mistura de 27% de etanol, contra apenas 10% na Europa.
A localização da planta da Geo Energética em Paraíso do Norte (em uma região, aliás, onde se confundem as divisas com os municípios de São Carlos do Ivaí e Tamboara), não foi aleatória. Alessandro Gardemann, diretor da Geo, explicou que o projeto foi instalado exatamente naquele pedaço do planeta para poder utilizar os resíduos de cana de açúcar da CoopCana, uma enorme usina de açúcar e álcool que funciona em frente, no outro lado da estrada.
A Cooperativa Agrícola Regional de Produtores de Cana (CoopCana) é uma usina do setor sucroalcooleiro, que, ao nascer, em 1979, já estava comprometida com o antigo Proálcool, como destacou o seu diretor-presidente, Germano Sordi. Ele lembrou que, há 30 anos, os usineiros não sabiam o que fazer com a vinhaça, o bagaço de cana e a cinza resultante do processo industrial. “Hoje, tudo é aproveitado. A torta de filtro vira biogás. O bagaço vira energia elétrica, o gás carbônico vira bicarbonato. Na nossa usina, só não aproveitamos, ainda, a fumaça que sai da chaminé”, brincou.
A fábrica de biogás da Geo Energética funciona em regime de 24 horas, durante todos os dias do ano. Os caminhões da CoopCana precisam se movimentar apenas algumas centenas de metros para despejar diariamente 200 toneladas de torta de filtro, como é denominado o resíduo do processo sucroalcooleiro. A torta é submetida à biodigestão e se transforma em biogás na Geo.
A pequena planta da Acesa Bioenergia, que fica no mesmo terreno, recebe o biogás com 60% de metano e através de um processo de purificação eleva o percentual para 96,5%, transformando o biometano em um combustível com as mesmas características técnicas do GNV, ou seja, algo que pode ser utilizado por veículos no Brasil, rigorosamente dentro das exigências técnicas da ANP, a agência que cuida dos combustíveis.
“Não estamos inventando nada. Tudo isto já existe na Alemanha e nos Estados Unidos e funciona muito bem. Só queremos provar que também pode funcionar no Brasil. Como somos um país que tem enorme necessidade de aumentar a eficiência na sua economia, acreditamos que o nosso projeto se insere nessa busca de mais eficiência no segmento de combustíveis. Precisamos apenas contar com respaldo de decisões governamentais adequadas”, afirmou Ricardo Gomara, diretor da NPR, uma holding de investimentos que, entre outros negócios, tem o controle societário da Acesa Bioenergia.
Sordi, da CoopCana, tem dúvidas naturais em relação à viabilidade da obtenção desse biometano através do biogás. “Será que é possível pegar todo o meu processo industrial e substituir o diesel pelo biometano? Meus caminhões e minhas máquinas podem utilizar o biometano?”, indagou. Alessandro Gardemann diz que sim, tanto que, no próximo ano, uma grande montadora de caminhões já deverá disponibilizar veículos pesados movidos a gás. Ele explicou ainda que a New Holland, tradicional fabricante de máquinas e implementos agrícolas pertencente ao Grupo Fiat, deverá lançar, no primeiro semestre de 2020, um trator com o gás natural como combustível.
Todos esses empresários estão comprometidos com a sustentabilidade do processo econômico e depositam muita esperança no avanço de decisões que permitam a substituição do diesel pelo biometano. “O potencial claramente existe”, afirmou Gardemann. Uma dificuldade que existe hoje é que o pessoal envolvido com o biogás precisa simultaneamente desenvolver a indústria, ao mesmo tempo em que são criados o marco regulatório e o modelo de comercialização, o que exige intensa negociação com as autoridades. Gardemann, por exemplo, é o presidente da Associação Brasileira de Biogás e Biometano (Abiogás), enquanto Kropsch é o seu vice. Ambos só pensam no desenvolvimento da indústria do biogás, dia e noite.
As planilhas da Audi mostram que o A5 Sportback apresenta um consumo de até 15 km com um litro de gasolina e até 22 km com um metro cúbico de gás natural. Nesse contexto, a montadora — que tem uma planta na região metropolitana de Curitiba — deposita muita esperança no Rota 2030, um programa recentemente aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo presidente da República, que pretende dinamizar a indústria automobilística através do uso mais racional de combustíveis.
Evaldo Fabian, sócio de Alessandro Gardemann na Geo Energética, disse que a empresa, sob o ponto de vista da tecnologia, está mais do que aprovada. “Inclusive, já utilizamos mais de 30 tipos diferentes de resíduos orgânicos, visando à obtenção do biogás. E o processo funciona muito bem”. No processo industrial, a Geo aproveita de tudo, desde a torta de filtro da cana de açúcar, até refrigerantes vencidos e derivados da suinocultura e da avicultura. “Aqui, tudo vira biogás”, garantiu.
(*) O repórter viajou a convite da Geo Energética.