GD causa divergência entre associações
Maurício Corrêa, de Brasília —
Todo final de ano se caracteriza normalmente por uma relação de paz e amor. Mas, neste final de 2019, a coisa azedou entre duas associações empresariais do setor elétrico (a Abraceel, dos comercializadores, e a Abradee, dos distribuidores), reacendendo uma antiga divergência entre os dois segmentos, que há muitos anos estavam aparentemente pacificados.
O motivo foi uma decisão da Abraceel de não subscrever um documento proposto pela Abradee, que cria o marco regulatório do chamado prossumidor. Quando a Abraceel levou o assunto aos seus associados, houve polêmica e os comercializadores se dividiram quanto à decisão de assinar ou não o documento.
Diante da bola dividida, a questão foi levada à decisão do Conselho de Administração, que entendeu ser mais conveniente para os comercializadores não apenas não assinar a proposta de iniciativa dos distribuidores, como também concluiu que a Abraceel é contra a criação do marco regulatório do prossumidor.
Naturalmente, velhos fantasmas que durante anos caracterizaram as relações entre as duas associações empresariais voltaram a bater na porta.
Este site apurou que a Abradee encaminhou à Abraceel a proposta de assinar o manifesto em meados de dezembro, da mesma forma como fez com outras associações empresariais do setor elétrico.
A solicitação era de uma assinatura conjunta do documento, o que é uma espécie de praxe no ambiente das associações que formam o SEB quando há afinidade entre elas em relação ao tema proposto. De modo geral, esses temas são negociados previamente, e a assinatura em conjunto passa a ser apenas uma mera formalidade entre as associações.
Tão logo recebeu o documento, a Abraceel chamou os seus associados para uma conversa a respeito do assunto, o que aconteceu no dia 16 de dezembro.
Uma fonte explicou a este site que a expectativa inicial dos comercializadores quanto ao manifesto da Abraceel dizia respeito à venda dos excedentes da geração distribuída e do pagamento de tarifas com o uso das redes de distribuição. Nesse sentido, poderia ocorrer uma convergência entre os interesses da Abraceel e da Abradee quanto à geração distribuída.
Entretanto, a questão melou quando também se observou que a proposta da Abradee considerava o fim do sistema de compensação de energia a partir de 2025 para novos usuários e a partir de 2030 para todos os usuários.
Vários comercializadores estão envolvidos com projetos de geração distribuída e não concordaram com o fim dos subsídios, sob o argumento que os contratos em vigor devem ser respeitados para não inviabilizar os investimentos já efetuados.
Quando surgiu, no início dos anos 2000, a Abraceel sofreu um forte controle dos distribuidores. Muitos deles possuíam comercializadoras e contribuíram em larga escala para o funcionamento da nova associação. Através do conselho de administração, controlavam as iniciativas dos comercializadores, o que acabou gerando enormes ressentimentos durante anos.
Nos bastidores do mercado livre, os comercializadores chegaram a se auto-intitular como “independentes ou puros”, ou seja, aqueles que não possuíam relações societárias com os distribuidores, enquanto os vinculados aos conglomerados elétricos liderados por distribuidoras eram chamados de “dependentes ou impuros”.
Havia tantos chutes nas canelas uns dos outros, que, quando alguém queria se referir à associação dos comercializadores de forma pejorativa, se chamava a Abraceel de “Abradee do B”. Isso era muito ofensivo.
Entretanto, ocorreu algo que era mais ou menos esperado. Com o tempo e a expansão do mercado livre de energia elétrica, foram surgindo cada vez mais comercializadores ditos “independentes”, que se associaram à Abraceel, até que em um belo dia passaram a controlar efetivamente a associação.
Hoje, o presidente do Conselho de Administração da Abraceel, Ricardo Lisboa, é de uma comercializadora que não tem vínculos com a distribuição (a Delta Energia) e, no CA, apenas uma cadeira, a de Ricardo Motoyama, pertence a conselheiro que trabalha em uma distribuidora, o Grupo CPFL. É uma situação irreversível e provavelmente os distribuidores nunca mais terão dentro da Abraceel o controle firme que já tiveram.
A Abradee tem sido bastante crítica em relação aos subsídios que hoje beneficiam a geração distribuída, pois entende que um dos atrativos da GD corresponde à perda de receita das distribuidoras com o uso da rede pelo possuidores de placas solares.
A associação dos distribuidores não contesta e evolução tecnológica, mas entende que o sistema precisa ser mais justo. Nesse contexto, deveria operar sem incentivos que favoreçam alguns (a GD) e penalizem outros (a distribuição). Os distribuidores têm total convicção que, hoje, os consumidores da geração distribuída pagam menos do que deveriam pelo uso das redes de distribuição de energia. “Não é possível que isso aconteça mais quando todos batalham exatamente em favor de tarifas transparentes”, disse uma fonte ligada à Abradee.
Um consultor ouvido por este site argumentou que a Abraceel, com a recusa em assinar o manifesto da Abradee, pode ter dado uma espécie de tiro no pé. Como explicou, embora os distribuidores não tenham mais ingerência nos destinos da Abraceel, eles possuem muito mais força política e, nessa condição, podem atrapalhar os planos de modernização do setor elétrico brasileiro, principalmente na parte que diz respeito à abertura total do mercado, o que é uma antiga bandeira dos comercializadores.
Embora, no dia 16 de dezembro o MME tenha oficializado a Portaria 465, que diminui os limites de carga para contratação de energia e consequentemente amplia o mercado livre a partir de janeiro de 2021, flexibilizando para cargas de 500 kW, o fato é, desde 2016, o MME sinaliza com mais liberdade de mercado, mas o resultado tem sido a conta-gotas, não na velocidade pretendida pela Abraceel.
A Abraceel atua fortemente para que seja adotada uma proposta mais efetiva de abertura do mercado, para cargas inferiores a 500 kW, a partir de janeiro de 2022. É aí que pode morar o perigo, na visão dessa mesma fonte, pois mais mercado livre também poderá significar menos receita para a distribuição. E o troco da Abradee poderá vir a cavalo, atuando nos bastidores — o que sabe fazer muito bem — para minar a abertura do mercado proposta pela Abraceel.