Brasil não quer perder a energia do Paraguai
Maurício Corrêa, de Foz do Iguaçu —
Em 26 de abril de 2023, o Tratado de Itaipu — que é o instrumento legal que regula o controle binacional da hidrelétrica pelo Brasil e Paraguai — completará 50 anos. E precisará ser revisto o chamado Anexo C, através do qual o Paraguai se obrigou a vender exclusivamente ao Brasil o excedente de sua cota de energia não utilizada.
A capacidade instalada da hidrelétrica é de 14 mil megawatts. Contratualmente, metade da energia vai para o Paraguai e a outra metade é brasileira. Mas, como o Paraguai tem uma economia menor e consome menos, a maior parte da sua metade é vendida ao Brasil, que precisa dela desesperadamente para equilibrar o balanço entre as diversas fontes de geração elétrica e o consumo que os seus consumidores demandam.
Um bom exemplo comparativo é o momento atual. Mesmo com a economia em baixa, comparando-se com o período pré-pandemia, bastou uma crise hídrica para gerar uma confusão tremenda com muitas dúvidas sobre a garantia de suprimento e a eventualidade de novo racionamento de energia. Embora aparentemente as chuvas estejam reequilibrando as coisas, um racionamento no início de 2022 ainda não está totalmente descartado.
Por isso, o Brasil, hoje, literalmente, raspa o fundo do tacho, jogando no mercado qualquer tipo de energia disponível, inclusive as mais caras e poluentes. É fácil entender que politicamente um racionamento, neste momento, seria calamitoso para um presidente da República que só pensa naquilo, ou seja, a reeleição em 2022. Então, é possível imaginar o caos que seria, em condições normais de temperatura e pressão, se o Paraguai pegasse a sua parte, consumisse o necessário e simplesmente vendesse o restante da energia, por exemplo, para a Argentina.
As autoridades brasileiras estão pisando em ovos e em absoluto silêncio sobre a renegociação do Anexo C. Ninguém diz abertamente, nem no Itaramaty e nem no MME. O fato concreto é que é inegável que diplomaticamente a questão é ultra-delicada, pois os brasileiros temem perder o controle sobre a energia elétrica não utilizada pelo Paraguai e cuja comercialização é regulada pelo Tratado de Itaipu.
O diretor geral brasileiro da Itaipu Binacional, João Francisco Ferreira, que é um general da reserva, aprendeu rapidamente a ser um diplomata, nos seus poucos mais de seis meses de gestão à frente do cargo. Trata o assunto com a máxima cautela, pois sabe que qualquer vírgula fora do lugar pode prejudicar os entendimentos com os negociadores paraguaios. Ele não foge do assunto, mas pondera o peso de cada palavra dita numa entrevista à imprensa.
É lógico que o Brasil e o Paraguai não podem esperar o dia 26 de abril de 2023 para começar a renegociar o Anexo C e as partes têm conversado sobre o assunto, de forma discreta, como admite o general Ferreira. ”O Anexo C poderá ser revisto, mas isso não é impositivo. O tratado diz que pode ser feita uma revisão a partir de 2023. Os dois países já estão debruçados sobre o assunto mas o interesse dos dois países poderá ser diferente em algum momento. Por isso, é preciso ter o entendimento”, argumenta o diretor geral brasileiro da UHE.
Ele lembra que os ministérios de Relações Exteriores e de Minas e Energia do Brasil são os condutores das conversas com os paraguaios. Itaipu integra um grupo de trabalho que oferece suporte técnico às duas pastas. “Estamos construindo cenários, pois não sabemos o que vai acontecer. Ninguém pode dizer que estamos atrasados neste assunto. O Brasil está fazendo no momento certo”, enfatiza o general, frisando que “não é bom começar a negociar antes da hora”. Ele tem razão, pois esta é uma condição básica para qualquer boa negociação. Com a sua experiência de vida, sabe há muito tempo que o apressado come cru.
“Estamos nos preparando”, disse, salientando que o Brasil e o Paraguai têm tido reuniões frequentes. Na sua visão, é importante afastar totalmente a binacional dessas negociações diplomáticas, inclusive o Conselho de Administração e a Diretoria-Executiva, para não contaminar o dia a dia da hidrelétrica.
Ele se recusa a emitir qualquer tipo de comentário a respeito do que é bom e o que é ruim para o Brasil, na renegociação do Anexo C. “Não posso e não devo opinar sobre o que é o melhor”, acrescentou, enfatizando que “nosso Ministério de Relações Exteriores está ciente de tudo isso. Nós apenas construímos cenários. Não posso dizer se é melhor para o Paraguai vender a sua energia para outro país”.
Para se entender esses bastidores é preciso lembrar que, quando o Tratado de Itaipu foi assinado, em Brasília, em 1973, os dois países viviam sob ditaduras militares consolidadas. No Brasil, era a época do general Emílio Médici.
No Paraguai, do general Alfredo Stroessner, que também governou o seu país com mão de ferro e era uma espécie de protegido do Brasil. Quando foi deposto, ele aqui viveu exilado até a morte, em 2006.
Sob o ponto de vista diplomático, o Paraguai como um todo, não apenas a binacional Itaipu, é um tema tratado com muita sensibilidade pelo Brasil. No interesse comum também existe uma vasta fronteira seca, a forte presença de milhares de agricultores brasileiros no Paraguai, a atuação do crime organizado e o contrabando de tudo, inclusive armas, entre outros assuntos. O Paraguai tem sido há anos uma espécie de santuário para criminosos brasileiros envolvidos com o narcotráfico e assaltos a bancos.
O general Ferreira conhece bem o Paraguai e os paraguaios. Ele diz que, no início da carreira militar, acompanhou as negociações entre o Brasil e o Paraguai, que foram conversas diplomáticas difíceis envolvendo todos os países da Bacia do Prata. “Quis o destino que, em 1983, eu fosse designado para uma missão do Exército brasileiro em Assunção, onde morei dois anos e fiz grandes amizades. Hoje, eu me sinto muito bem trabalhando junto com os paraguaios (na UHE)”, afirmou. Na embaixada do Brasil, em Assunção, funciona uma missão militar brasileira.
Há anos, o Paraguai vem demonstrando com clareza que não está satisfeito com a rigidez contratual imposta pelo Anexo C. Hoje, ambos os países vivem sob regimes democráticos e os paraguaios já deixaram a entender que gostariam de ter um pouco mais de compreensão dos seus parceiros brasileiros na usina.
Em meados dos anos 2000, por exemplo, os paraguaios fizeram uma iniciativa ousada de contatar a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), para conversar sobre a possibilidade de vender parte da energia paraguaia no mercado livre brasileiro. Foi um entendimento facilitado porque, na época, a Abraceel tinha como presidente executivo Paulo Pedrosa, cujo pai, militar de carreira, também trabalhou na missão na embaixada do Brasil e por isso Pedrosa viveu parte de sua vida em Assunção. Lá, conhece várias pessoas que mais tarde, como ele, foram para o setor elétrico.
O interesse paraguaio pelo ML brasileiro esbarrou nas complexidades do próprio mercado, pois os paraguaios não eram agentes da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e provavelmente teriam que constituir uma comercializadora no Brasil.
Na época, o assunto parou por aí, mas para os diplomatas e para as autoridades do setor elétrico brasileiros ficou registrado que os paraguaios, agora vivendo sob um regime democrático e sem as amarras da camaradagem que envolve os militares nos dois lados da fronteira, queriam algo mais além de simplesmente vender para o Brasil excessos de energia não consumida por eles.
Para o diretor geral brasileiro, se na renegociação do Anexo C ficar decidido que o Paraguai poderá vender para quem quiser, para a usina “não fará diferença”. Ele admitiu, contudo, que a binacional talvez tenha que criar uma superintendência ou diretoria de comercialização de energia se a renegociação avançar nessa direção de dar mais liberdade aos paraguaios.
“Isso não nos assusta. Agora, se é melhor ou pior para o Brasil ou para o Paraguai serão os ministérios de Relações Exteriores dos dois países que definirão. Os países colocarão suas propostas na mesa de negociação. É lógico que cada parte julga que a sua proposta é mais vantajosa. Mas por enquanto só temos cenários, que vão desde a liberação total da energia até o outro extremo, que é não acontecer nada. Nós vamos negociar um meio-termo. Se não houver concordância, o Anexo C não será mudado”.
O repórter viajou a Foz do Iguaçu como convidado da Itaipu Binacional.