Mercado aumenta mas fica mais vigiado
Maurício Corrêa, de São Paulo —
O mercado elétrico prepara-se para uma das maiores transformações da sua história, com a incorporação de milhões de consumidores que poderão escolher seus supridores. Essa mudança está ocorrendo com prudência, diálogo e ajustes periódicos no modelo, conforme ficou demonstrado na reunião organizada nesta quinta-feira, 16 de março, em São Paulo, pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
O auditório totalmente lotado da Federação do Comércio do Estado de São Paulo foi uma prova da intensa preocupação dos agentes com o que vem pela frente. A CCEE sobretudo queria ouvir o que os agentes pensam a respeito da segurança do mercado, um tema no qual a Câmara e a Aneel têm investido muito tempo desde 2018/9, quando o default de várias comercializadoras abalou o mercado.
A crise obrigou todo mundo que está no mercado elétrico a pensar. “Estamos aprendendo com o que aconteceu, para não tomar mais sustos na frente. Todos nós queremos um mercado seguro”, disse o presidente do Conselho de Administração da CCEE, Rui Altieri.
Toda a reunião girou em torno de um único tema: a Consulta Pública 011, do ano passado, que está aberta na Aneel até o dia 17 de abril, e que visa recolher contribuições para implantar o chamado monitoramento prudencial dos agentes que operam no mercado, para evitar riscos de liquidez no ambiente de compra e venda de energia elétrica. Com as devidas adaptações, pois são mercados diferentes, é mais ou menos como o Banco Central atua preventivamente junto aos bancos.
A conselheira Roseane Santos, da CCEE, que tem liderado a equipe que trabalha no tema (em linha direta com a Aneel), fez um resumo de todas as iniciativas que nasceram dessa dobradinha CCEE/Aneel, desde maio de 2019, mostrando que tem uma lógica de encadeamento. “Hoje, não conseguimos antever o problema. O monitoramento prudencial é preventivo, pois a CCEE tem a inquietude de sempre melhorar”.
Ela deixou claro que a CCEE “não quer ser polícia”, mas o modelo, para avançar com a ampliação do mercado livre que se pretende, precisa ficar atento às chamadas “condutas anômalas”. É por isso que a governança está sendo arrochada.
Afinal, o ML tem pouco mais de 20 anos e nesse período já se viu de tudo, inclusive alguns espertinhos que abriram comercializadoras com capital de R$ 5 mil, deram um senhor tombo no mercado, gerando prejuízo de milhões de reais espalhado por aí, sem garantia, sem nada, impactando balanços e deixando as contrapartes chupando o dedo. É uma situação que a CCEE, a Aneel e os próprios agentes não querem que se repita num mercado que vai crescer várias vezes.
Max Xavier Lins, que conhece o assunto como poucos, tendo sido um dos pioneiros do mercado livre, disse que as mudanças pretendidas serão muito importantes para a indústria da energia elétrica como um todo, mas lembrou que as informações dos clientes precisam ser resguardadas para segurança das próprias operações. “Não nos iludamos. Não existe segurança plena, o que só aconteceria com os recursos pecuniários sendo depositados ex-ante numa conta. Então, o caminho tem que ser mitigatório”, assinalou.
Nesse mercado em que ninguém está totalmente seguro, causou espanto a informação dada por Edison Lugli, especialista da CCEE, o qual revelou que o sistema da Câmara sofre de 8 a 9 tentativas de ataques de hackers por segundo. “Todos repelidos”, garantiu.
Encerrada a fase da consulta pública na Aneel, haverá um período sombra cujo prazo ainda não está definido. Deverá ser de no mínimo seis meses, mas poderá ser de um ano, para que todos possam se adaptar às exigências. As pessoas estão ansiosas e têm a percepção que é fundamental começar o período sombra o quanto antes.
“É normal pensar nesse tipo de mudança depois dos casos de default ocorridos em 2018 e 2019”, reconheceu José Antônio Sorge, da comercializadora Ágora Energia. Na visão de Fernando Coli, assessor da diretoria da Aneel, a agência reguladora tem a função legal de monitorar o mercado, mas ela quer ir, junto com a CCEE, um pouco além, identificando as alavancagens praticadas por alguns agentes e que estejam acima da capacidade de liquidez.
“Primeiro, haverá o monitoramento. Depois trataremos das salvaguardas e só depois as garantias financeiras. Queremos construir a melhor regulação possível”, disse Coli, explicando que o período sombra servirá para verificar se os dados estão bem calibrados.
Madalena Porangaba, gerente executiva da Câmara, esclareceu que, numa iniciativa da CCEE junto a apenas 153 agentes, houve 84% de respostas aos questionamentos feitos pela Câmara. Das 130 respostas, a CCEE concluiu que três agentes deveriam entrar em regime de monitoramento intensivo confidencial. Ou seja, tem furos no mercado, hoje, que não podem acontecer quando se convida milhões de consumidores a participar, que é o que se espera na ampliação pretendida pelos agentes.
Do auditório partiram perguntas extremamente inteligentes e oportunas, tais como a CCEE pretende lidar, no período sombra, com questões fundamentais do dia a dia do mercado, como a volatilidade dos preços, a taxa de juros, a responsabilização sob o viés das questões societárias, o comercializador varejista e a inflação.
Existe curiosidade, mas, também, muita desconfiança dos agentes, pois a confidencialidade dos contratos é uma condição fundamental para que o mercado possa operar. A CCEE garante que tudo será criptografado e que a Câmara não terá acesso aos dados.
Até a quebradeira de bancos nos Estados Unidos, como ocorreu nos últimos dias, é algo que bota uma interrogação em todo mundo. “O episódio do Silicon Valley Bank (SVB) ensina bastante coisa do que se espera de um monitoramento prudencial”, opinou Alan Genaro, sócio da Riscométrica, um dos debatedores do evento.
O presidente da Abraceel, a associação dos comercializadores de energia, Rodrigo Ferreira, participou do evento como vice-presidente do Fórum das Associações do Setor Elétrico (Fase). Nessa condição, não teve muito o que dizer, pois a segurança do mercado não faz parte da pauta do Fase.
Entretanto, falando como Abraceel, ele garantiu a este site que seus associados dão total apoio à proposta e que a organização que dirige tem trabalhado de comum acordo com a Aneel e a CCEE. “O mercado livre é novo. Vem evoluindo a cada ano”, frisou Ferreira. Ele disse que os comercializadores estão se preparando bastante para as mudanças, “mas é importante que todo o mercado participe de forma concreta”.
A conselheira Roseane Santos demonstra entusiasmo com a proposta. E não teme eventuais retrocessos de natureza institucional. Numa rápida entrevista ao final do evento, este editor lembrou que o contexto político atual é de um governo que aparentemente não tem muito apreço pelos mercados em geral. Ela não deu bola para a provocação: “Estamos trabalhando em total alinhamento com a Aneel, que é um órgão de Estado. E eu confio nas instituições”, arrematou.