O Amapá e os sonhos do SEB
O apagão no Amapá, ainda não totalmente resolvido, por sinal, apesar da propaganda governamental, eclipsou uma questão que não pode ser ignorada pelo SEB.
Este editor não gosta de desempenhar o papel de mal humorado, mas o fato é que setor elétrico brasileiro vive um estranho paradoxo, que é um retrato dos atrasos que cercam o SEB. Não se pode desconhecer essa situação, jogando-a para baixo do tapete.
É indiscutível que a expansão da geração no Brasil tem ocorrido em grande parte como conseqüência de projetos de energias renováveis destinadas ao mercado livre. O mais curioso é que essa dinâmica brevemente poderá deixar de acontecer, pois praticamente quase toda a carga que estava em condições de migrar para o mercado livre já tomou esse caminho.
Dentro de pouco tempo, mesmo considerando o ritmo atual da modernização do SEB por parte do MME e da Aneel, ou seja, a passo de tartaruga, haverá um sem-número de projetos de energia solar ou eólica que não encontrarão clientes no mercado livre. Vai ser um gargalo ao contrário, interessante para se acompanhar e ver o que vai acontecer.
Em outros momentos, este site já tentou explicar aos leitores que o SEB tem razoável estrutura técnica, mas, em termos legais e regulatórios, corre sem sucesso atrás do prejuízo. São questões históricas, na verdade um somatório de várias gestões, ministros, técnicos de alto escalão e a contribuição “magnífica” da classe política, a qual só olha para o próprio umbigo e não tem interesse em resolver absolutamente nada. Ou resolver a conta gotas, atendendo apenas aos seus interesses paroquiais e provincianos.
O Amapá é um exemplo disso. No Congresso, há várias questões fundamentais e urgentes do SEB para serem resolvidas e nunca se viu o empenho igual da bancada do Amapá para resolvê-las, inclusive do poderoso presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre.
A falta de energia no seu estado era um grande problema e é justo que ele tenha tentado resolver o apagão. Mas não seria nada demais se ele dirigisse a mesma energia pessoal para resolver algumas indefinições legais que afligem o SEB e dormem nas gavetas da Casa.
Há obstáculos de toda ordem que dificultam a modernização do SEB. Em compensação, quem deveria pisar no acelerador e liderar o processo de mudanças se contenta com pouco.
Nesse contexto, é fantástica a experiência de se abrir a homepage do Ministério de Minas e Energia e observar que as suas principais autoridades estão comemorando um ano de existência de um monstrengo burocrático denominado “Comitê de Implementação da Modernização do Setor Elétrico Brasileiro”, que até agora não modernizou coisa nenhuma. É o tipo de coisa que faz a alegria dos burocratas. Deveria gerar perplexidade, mas é inacreditável que produza euforia.
Meses antes da criação desse comitê, naturalmente foi criado um grupo de trabalho destinado a trabalhar na modernização do SEB. Por ocasião do surgimento desse GT, o site Paranoá Energia alertou que se viesse alguma mudança, ia demorar. Não deu outra coisa.
“E agora, a bola foi mais uma vez chutada para a frente, porque a burocracia é a burocracia e esses técnicos há anos encastelados no MME, na Aneel, na CCEE, na EPE e no ONS, ganham muito bem e precisam justificar os respectivos salários, mandando em alguma coisa. E se tem algo que eles simplesmente odeiam é pensar em eventuais mudanças que possam, por mínimo que seja, ameaçar os seus cargos e suas estruturas historicamente ultrapassadas de poder”, escreveu este editor.
Infelizmente, este site foi profético, pois ninguém aparentemente está disposto a mudar nada, a não ser uma ou outra alteração cosmética. Embora sempre se refira à modernização do SEB nos seus discursos, o ministro Bento Albuquerque apenas se repete e nada mais. Esse troço não anda.
É duro perceber que o MME, que deveria ser o carro-chefe dessas transformações históricas, contenta-se em gravar vídeos comemorativos de um ano de trabalho de um “Comitê” que na realidade não resolveu absolutamente nada.
Paralelamente a essa triste conclusão, observou-se também a enorme alegria registrada na equipe dirigente do MME com uma reunião realizada no dia 29 de outubro de outro monstrengo burocrático, a tal “Comissão Permanente para Análise de Metodologias e Programas Computacionais do Setor Elétrico (Cpamp)”. O que se comemorou foi o fato de, pela primeira vez, a tal Cpamp ter contado com a participação de dirigentes das associações setoriais do setor elétrico brasileiro.
Essa Cpamp é uma comissão completamente fora de sintonia com qualquer vontade efetiva de modernizar o setor elétrico. Embora os gênios se esforcem para revestir esses programas computacionais de sofisticação intelectual, o fato é que, no SEB, não existe nada mais anacrônico e atrasado do que a definição de preços da energia elétrica através de modelos computacionais.
Esses programas e a tal Cpamp, portanto, são incompatíveis com a modernização, o que mostra como as associações empresariais do SEB também se contentam com muito pouco. O governo, que claramente faz corpo mole para mudar o SEB, oferece uma minúscula concessão, uma merrequinha de nada, e as associações vão correndo aplaudir a grande decisão governamental que é permitir participar da Cpamp … a cada quatro meses. Extraordinário.
Em um comunicado aos seus associados, há poucos dias, uma associação empresarial do SEB saudou a tal reunião e destacou a “agenda desafiadora, e a busca por maior transparência, previsibilidade e antecedência das decisões da Comissão”.
É inacreditável que essa seja a visão de um conjunto de empresas que batalham pela modernização do setor elétrico brasileiro. Não se pode jogar toda a culpa apenas nos burocratas federais, pois eles fazem o que todos os burocratas fazem, que é atrapalhar. Neste caso, o setor privado, com a sua miopia e falta de visão estratégica, está apenas dando uma ajudinha.
Daqui um ano, provavelmente o MME estará comemorando dois anos de existência do “Comitê de Implementação da Modernização do Setor Elétrico Brasileiro”. E as associações empresariais do SEB estarão novamente comemorando o notável fato.
No ritmo dos acontecimentos, é possível que o avanço até lá não seja grande coisa e ainda estejamos discutindo a modernização do SEB, abertura total do mercado, novo mercado de gás, etc, etc.
Não custa lembrar que, antes do final do Governo Temer, o pacote de mudanças estava totalmente pronto e só dependia de vontade política. Os agentes tinham sido consultados, o Governo tinha feito as suas observações e todos os documentos estavam devidamente rascunhados na Casa Civil da Presidência da República. Aí, veio o atual Governo, jogou tudo fora e começou de novo. É por isso que a modernização não anda. Ponto para a burocracia.
O professor Edvaldo Santana, que sabe das coisas, talvez esteja com a razão. Há poucos dias, ele comentou que o apagão no Amapá não se encerra neste episódio de três semanas sem energia. Na sua avaliação, é possível que o Amapá produza um outro tipo de apagão, que é o de natureza legal e regulatória, atrasando ainda mais todo o processo de modernização do setor elétrico brasileiro.
Aí fica bom demais, do jeitinho que a burocracia aprecia. Ninguém mexe em absolutamente nada e vamos em frente, cada um realizando o seu prejuízo e engavetando os seus sonhos de modernização.