MP do Racionamento é retrocesso
Na época do regime militar, que alguns consideram tão bom que o querem de volta, embora para este editor tenha sido um desastre a se esquecer na poeira da História, o setor elétrico era manejado à moda prussiana. Os generais decidiam e ponto final. Isso valia para o setor elétrico também.
Era algo relativamente fácil de se fazer. Vivíamos um período de ditadura, a imprensa era censurada, o Congresso era super-controlado e, como se isso não fosse suficiente, o setor elétrico era quase que totalmente estatal. Fácil, portanto, de ser gerenciado. As estruturas de comando no SEB eram fortemente hierarquizadas, à moda militar.
Um dos aspectos positivos da formação militar é a preocupação com a infraestrutura. Isso é uma coisa boa. Mas não pode ser levada ao extremo, ignorando que existe uma sociedade humana além das hidrelétricas. No contexto do regime militar, o setor elétrico brasileiro foi privilegiado porque as decisões de Operação não consideravam (ou pouco consideravam) o uso das águas dos rios para outras finalidades que não fossem a geração de energia elétrica.
Não havia a mínima preocupação com outros usos das águas, como atendimento ao abastecimento humano ou dos animais, irrigação, preservação do meio ambiente e com o contexto geral de administração das bacias hidrográficas.
Com a redemocratização, a partir de 1985, esse quadro tenebroso de privilégios para o setor elétrico foi se alterando aos poucos. Hoje, o Brasil dispõe de um manejo das águas dos rios que avançou bastante em relação aos tempos da ditadura.
Esse avanço, entretanto, agora corre o risco imediato de um sério retrocesso institucional com a anunciada medida provisória que poderá tirar atribuições da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (Ana), concentrando poderes sobre os reservatórios no Ministério de Minas e Energia. Onde, aliás, quem manda é um almirante da ativa. Ele, de fato, por formação entende de água, mas sob outro ângulo, que é aquele de quem apenas dirige um barco. Ou seja, também é um usuário das águas. Para o atual governo, é mais fácil evitar o racionamento controlando o uso das águas dos rios e novamente privilegiando a geração de energia elétrica.
Talvez as pessoas não tenham essa percepção, mas se essa MP sair da forma como vem sendo falado, será um enorme retrocesso institucional, embora configurado em pleno regime democrático eleito pelo povo. O modo de fazer a gestão dos reservatórios das hidrelétricas, devido ao risco de um próximo racionamento de energia elétrica, ao que tudo indica vai voltar ao estilo daquilo que se praticava nos tempos da ditadura, nos anos 70, governos Médici ou Geisel, por aí. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Sem essa de discutir usos múltiplos de águas dos rios.
É profundamente lamentável e triste que isso possa acontecer, embora não cause surpresas, considerando que o Ministério de Minas e Energia, hoje, é um pedaço da administração federal recheado de militares de todas as forças. Não há como impedir que a visão aprendida nas academias militares acabe prevalecendo numa área em que civis têm outra forma de olhar para o mundo.
As águas dos rios são, sim, importantes para produzir energia elétrica, mas também o são para os ribeirinhos que tem as suas plantações e suas fazendas. E para as pessoas que vivem nas cidades que ficam às margens desses rios. O Brasil dispõe de instrumentos mais do que eficazes para fazer a gestão das bacias hidrográficas, ou seja, sem autoritarismo.
Lamentavelmente, o que se anuncia com essa chamada MP do Racionamento é um claro retrocesso, uma volta ao passado autoritário. Enfim, é a cara do atual governo, que decidiu que até o São Pedro tem que bater continência e marchar no passo certo.