Oportunismo de oportunidade
Duas dezenas de organizações voltadas para a defesa do meio ambiente divulgaram um documento em que condenam a possibilidade de o relator do PL 414, que trata da modernização do setor elétrico, deputado Fernando Coelho Filho, incluir na sua proposta a criação de subsídios destinados à construção de uma malha de gasodutos para atender usinas termelétricas. Tudo indica que este é um caso típico de informação equivocada ou então de má-fé. A íntegra do documento encontra-se na seção Notícia deste site, sob o título “Manifesto alerta para novo Brasduto no PL 414”.
Um pouco da confusão do documento certamente pode ter sido gerado por inexperiência de organizações ambientais nesse tipo de detalhamento técnico complexo do setor elétrico. Ou então pelo excesso de experiência de algumas associações empresariais do próprio setor elétrico, que sempre estão muito atentas na defesa de interesses específicos e trabalham fortemente estruturadas no lobby dentro do Congresso Nacional.
O que chama a atenção é que, além dessas organizações ambientalistas, duas associações empresariais que defendem os interesses dos consumidores industriais de energia elétrica também subscrevem o documento.
Que as organizações ambientalistas atuem na defesa do meio ambiente não há o que contestar. É para isso que foram criadas. O curioso é encontrar duas associações do SEB também apoiando o manifesto, que certamente atravessou o samba ao forçar uma interconexão fantasiosa entre a modernização do SEB e a defesa do meio ambiente. Aparentemente, com esse manifesto foi criado o oportunismo de oportunidade.
Não é tão surpresa assim. Essas duas associações estão entre as que mais se destacam no trabalho insistente de tentar diminuir o papel das empresas de gás natural na economia, quase que criminalizando-as. Agora, ambas aproveitam a carona num documento de organizações ambientalistas para continuar a campanha contra o gás natural.
O Brasil tem uma economia bastante diversificada e sob qualquer ângulo que se tente compreender a situação é possível concluir que a nossa matriz energética compreende várias fontes de energia. O gás natural pode coexistir sem qualquer problema com os recursos hídricos, eólicos, parques solares, etc. Há espaço para todo mundo.
Nesse contexto, o que é relevante é oferecer as mesmas condições de isonomia para todos. Não se pode beneficiar uma fonte em detrimento de outras, como se costuma fazer no Brasil em certos momentos, dependendo do rei de plantão e da força política dos seus amigos. Desde que operando em condições de igualdade, basta deixar as fontes de geração elétrica competindo entre si. As mais eficientes terão maior participação no mercado. As menos eficientes ficarão chupando os dedos. O que se tenta fazer no Brasil, entretanto, é ganhar no tapetão, alijando-se politicamente fontes que poderiam melhor contribuir para o desenvolvimento do País.
Tanto quanto o gás natural, uma fonte que tem sofrido esse tipo de bullying é o segmento das PCH´s. Mesmo enfrentando uma série de dificuldades (infraestrutura de engenharia, licenças e encargos ambientais, financiamentos e uma esquisita tributação), as PCH´s têm resistido ao rolo compressor da incompreensão, gerando não apenas energia elétrica, mas também inúmeros benefícios para as áreas do País nas quais são instaladas. A coisa é tão maluca que o patrimônio de uma PCH qualquer é da União e a ela reverterá após o prazo de concessão, em torno de 30 anos.
Voltando ao manifesto em questão, uma das associações signatárias congrega consumidores industriais de menor porte. Neste caso, não há muito o que falar. Seus associados são na maior parte fabricantes de bens de consumo, atacadistas, processadores de carne de frango e porco, proprietários de shopping centers e até bancos. Empresas, enfim, que produzem pouco impacto no meio ambiente, mas que são consumidores cativos e livres de energia elétrica convencional e gás natural nos seus respectivos processos industriais.
Entretanto, no caso da outra associação signatária, é mais complicado tentar entender o que o seu nome está fazendo nesse documento que pretende ser um posicionamento em defesa do meio ambiente. Num lugar também inadequado, que é a discussão sobre um projeto de modernização do SEB, mas de algo que nem corresponde à realidade ainda. É como se os grandes consumidores industriais de energia elétrica adivinhassem o que está para acontecer no trabalho do relator Fernando Coelho Filho.
Essa segunda associação tem vários méritos, sem dúvida, mas não se pode esquecer que muitos de seus associados não estão exatamente comprometidos com a defesa do meio ambiente. Ao contrário, no seu dia a dia, são notórios agressores do meio ambiente e é até difícil entender como 20 associações de defesa do meio ambiente entraram nessa fria de se aliar a essa nata de grandes consumidores industriais de energia elétrica que não ligam a mínima para o meio ambiente. Ligam muito, sim, apenas para o valor a pagar na conta de luz a cada final de mês.
Para quem não sabe, o quadro de associados dessa organização empresarial, entre outros, abriga grandes companhias que extraem bauxita na Amazônia e a transformam em alumínio. Lá também estão uma das maiores mineradoras do mundo; quatro das maiores siderúrgicas do País; uma fábrica de cimento; uma fábrica de papel; uma gigantesca indústria do setor petroquímico; uma mineradora de cobre; um produtor de silício; fabricantes de vidro. Também estão nessa associação duas grandes mineradoras que foram responsáveis pelos maiores crimes ambientais ocorridos no Brasil, ambos no estado de Minas Gerais. Essa turma é que através da associação pretende falar na defesa do meio ambiente.
É muito fácil entender que assinar um manifesto que tenta criminalizar a distribuição de gás natural no Brasil, argumentando que está agindo em defesa do meio ambiente, não combina exatamente com aquilo que fazem diariamente esses grandes consumidores industriais de energia elétrica.
Essas duas associações do setor elétrico até hoje não conseguiram explicar exatamente porque são contrárias à ampliação da rede de gasodutos no Brasil. Nosso país construiu uma rede basicamente na costa e outra linha surgiu com o gás vindo da Bolívia. O Brasil só tem a ganhar com a interiorização e expansão da rede de distribuição de gás natural. Ainda mais porque, pela primeira vez, desde 2002, o crescimento do mercado de energia elétrica está superando o previsto no plano decenal de expansão.
E o que o relator do PL 414 está fazendo é justamente tentar integrar o planejamento do setor elétrico ao planejamento da área de gás natural, considerando principalmente a enorme quantidade de gás natural que vem com a exploração dos campos do pré-sal. Não se trata de ressuscitar o tal Brasduto.
Nos últimos 10 anos, o crescimento da infraestrutura na rede básica tem sido 13% superior ao planejado (considerando a extensão) e 323% acima do planejado considerando os custos de investimento. A razão disto está clara quando se olha onde está acontecendo esta expansão. Basicamente, nos estados da Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco e Minas Gerais, que respondem por mais de 50% dos investimentos.
Estes estados não respondem pela necessidade de atendimento aos consumidores, mas, sim, para atender a expansão de projetos de energia eólica e solar, que criam “clusters” de geração com mais de centenas de MW localizados. Portanto estão sendo construídas linhas de transmissão como se fossem de uso exclusivo desses geradores para permitir que eles gerem energia “barata” (sem incorporar este custo fundamental).
O que relator Fernando Coelho Filho está fazendo, segundo este site apurou, é permitir que gasodutos destinados à geração de energia elétrica, que eventualmente evitem custos em linhas de transmissão e subestações, possam incorporar esta economia no projeto, recebendo uma receita anual como se fosse uma linha de transmissão “virtual”. Sempre limitado ao valor que efetivamente tenha sido economizado. Portando isto contribuirá para a otimização do custo final ao consumidor e permitirá que as instalações de transporte possam atender outros usuários (estes pagando o devido custo), disponibilizando este energético em diferentes regiões do País.
Essas duas associações empresariais do setor elétrico brasileiro signatárias do manifesto (e outras que costumam fazer coro aos seus posicionamentos) precisam explicar melhor porque concentram boa parte dos seus esforços técnicos numa verdadeira guerra contra a área de gás natural. Ou essa fixação vai acabar em algum hospital psiquiátrico.