Aneel chocou o ovo da serpente
Há poucos anos, havia um único deputado federal em Brasília, de uma bancada do Nordeste, que só pensava na conta de luz dos consumidores. Antes de qualquer um dos seus colegas, de todos os partidos, ele percebeu inteligentemente que a energia elétrica era uma mina de votos e que não precisava fazer grande esforço para se reeleger. Bastava passar o mandato batendo na Aneel, na distribuidora de energia elétrica do seu estado e no contrato de concessão. Nunca fez outra coisa na sua atividade parlamentar. Fez escola.
Em seguida, apareceu um deputado federal em Minas Gerais, que gostou do modelito e o copiou integralmente. Era pau na Cemig, pau na Aneel e no contrato de concessão válido para a maior parte do território de Minas Gerais.
O movimento anti-tarifas de energia elétrica cresceu nas duas Casas do Congresso Nacional e até por uma certa culpa da Aneel, que passou anos e anos puxando o saco de qualquer Excelência detentora de mandato. A Aneel acabou chocando o ovo da serpente.
Foi um constrangimento generalizado, ao descobrir, no final de 2019, um inexpressivo deputado federal de Rondônia que apareceu de repente numa reunião semanal da diretoria colegiada da Aneel. O tal congressista fez a maior confusão, ao atravessar o samba na “defesa” dos consumidores do seu estado.
O que se vê agora, na Câmara dos Deputados, é a ampliação sem limites dessa demagogia. O País atravessa um ano eleitoral, todos os deputados federais praticamente batalham pela reeleição (alguns, poucos, não são candidatos) e não custa nada tirar uma casquinha num projeto populista que pretende anular os reajustes tarifários das distribuidoras fixados em contratos de concessão.
Os Senhores Congressistas não estão nem aí se, no início dos anos 60, o presidente da França, general De Gaulle, tenha dito que o Brasil não era um País sério. A maioria dos deputados federais talvez nem saiba quem foi o general De Gaulle. Eles só pensam na reeleição.
A situação é mais complexa ainda porque o presidente da República, que também aspira a reeleição, discretamente comunga dos mesmos ideais dos Senhores Congressistas. Ele tem uma reeleição difícil pela frente e se a Câmara dos Deputados aprovar uma proposta que anula reajustes tarifários das concessionárias de distribuição, Bolsonaro fará o sacrifício político de não vetar, pois ele aprecia a autonomia congressual, etc, etc.
Coitado do Brasil. Quem tem um pouco de massa cinzenta e cabelos brancos sabe há muito tempo que De Gaulle estava com a razão. O País não é sério. Contratos de concessão? Isso não tem a menor importância. O que interessa é preservar o interesse dos consumidores de energia elétrica, pois onde já se viu aumentos superiores a 20% nas tarifas?
É possível que muitas pessoas nem saibam porque isso acontece, até por comodismo de comunicação das distribuidoras. Comunicar-se bem nunca foi uma das qualidades do setor elétrico brasileiro.
As razões são muitas para esse tipo de aumento. Vale lembrar que o País acaba de sair de uma grave crise hídrica e durante meses os consumidores tiveram que arcar com pesadas contas mensais de energia elétrica, devido ao suprimento de energia térmica, muito mais cara que a hidráulica, pois os reservatórios estavam vazios e não podia faltar luz para os consumidores. Deus nos livre de um racionamento em ano eleitoral, pensaram os estrategistas do Palácio do Planalto, no que, aliás, estavam cobertos de razão. A energia térmica existe para isso. Faltou água nos reservatórios? Vamos tocar as térmicas.
Além disso, muitos contratos de concessão são lastreados em correção monetária pelo IPCA e a inflação está nos níveis mais altos de sabe-se lá quantos anos. Como se isso não fosse suficiente, muitas distribuidoras compram energia elétrica gerada pela Itaipu Binacional, cujos contratos são cotados em dólar. E a moeda americana está nas nuvens no Brasil.
Mas isso não basta para explicar porque agora a Aneel precisa dar reajustes elevados às distribuidoras. Outra razão é o diferimento de reajustes contratuais do passado, que foram jogados para agora e a fatura chegou.
Finalmente, o Brasil é um país que tem enorme dificuldade para organizar um orçamento federal decente, colocando dentro das contas de energia elétrica vários subsídios que talvez até sejam justos, mas deveriam integrar as contas do Tesouro Nacional e não ser bancados pelos consumidores de energia elétrica.
Isso acontece, por exemplo, com tarifas subsidiadas para a agricultura ou para os consumidores que vivem nos sistemas isolados da região Norte (e que não fazem parte do Sistema Integrado Nacional de energia elétrica). Há outros subsídios, todos bancados pelos consumidores de energia elétrica.
Então é devido a situações assim que a conta agora é salgada. Mas as Excelências não estão nem aí. Contratos, afinal, no entendimento dessa gente não são tão sagrados assim.
O fato é que essas coisas não são culpa de ninguém, de um partido ou de um presidente da República. São circunstâncias que envolvem o nosso País, cuja riqueza é desigual e para milhões de consumidores é realmente preocupante pagar a conta de luz no final do mês. No Brasil, mais da metade da população é tecnicamente pobre.
A preocupação dos Senhores Congressistas é preservar os consumidores de energia elétrica. Se na próxima eleição eles puderem dar um votinho em favor dos deputados que aprovarem a proposta, não é obrigatório, mas os Senhores Deputados, humildemente, agradecem. Deputado também é gente.